sábado, 2 de junho de 2018

A Boneca

Nasciam, todos os dias, manhãs agoniadas pelo leite que a ovelha teimava em doar. Aquela ovelha: a que tinha o nome de “Boneca” e a quem a menina dava pão endurecido nas suas mãozinhas pequenas. A ovelha que acorria ao chamado e aguardava a carícia e as confidências da menina agoniada, pelo leite da manhã. Para ser franca, todas as manhãs, a menina acordava sem fome e sem vontade de se vestir, e sem alegria para ir para a escola. Na verdade, a menina adorava aprender a juntar as letras, a escrever palavras, a criar textos, a desenhar galinhas, a pintar patos e ovelhas. Raros se tornavam os dias em que os seus desenhos não enfeitavam os cadernos dos amigos. Na realidade, a menina não tinha amigos, apenas uma quantidade de “outras crianças”, com idades diferentes da sua, ou da sua idade, que frequentavam a mesma sala de aula, mas que pouco tinham em comum com ela. Sobretudo na hora do intervalo, altura em que lhe roubavam o lanche, a empurravam para um canto e lhe chamavam “nomes de gente crescida”, daqueles que ela não se atrevia a reproduzir perto dos adultos, sob pena de apanhar uns açoites. As suas amigas, verdadeiras, eram as meninas de timidez superior à sua, de cabelos cobertos de insetos estranhos, de nariz sujo e roupas remendadas. A mãe recomendava-lhe que não se aproximasse delas, pois os seus cabelos compridos, cujo brilho e perfume eram o orgulho dos pais, adquiriam, usualmente, habitantes clandestinos, devido à convivência com elas. Mas as suas roupas lavadas, nada tinham contra as nódoas dos vestidos alheios. Os seus sapatos brilhantes, não conheciam barreiras perto dos sapatos ornamentados por solas gastas. Ela só queria brincar em paz. Mas a paz, nada queria com ela. Quantas vezes travava a guerra, dentro da sala de aula, com o olhar feroz da menina da carteira ao lado? E, simultaneamente, o recreio era palco de agressões por parte de crianças mais velhas, constantes ameaças efetivas aos seus cabelos, pontapés verdadeiros às suas pernas de criança indefesa? Quantas vezes, o seu orgulho a impedia de contar à professora a causa da sua tristeza constante? E o motivo dos seus textos curtos – que eram causa de gozo por parte da menina de olhar feroz? E o embaraço causado pelas dificuldades nas contas de somar, de subtrair, de dividir – que se tornavam a altura mais apropriada para a gargalhada de todos? Que razões teria para ir para a escola? Sentia-se bem em casa, a ouvir o rádio com as suas músicas preferidas, que aprendia com a facilidade de quem está habituado ao palco. Preferia as tardes em que voltava da escola, com o corpo moído e as negras encobertas pelas roupas, para se juntar às confidências junto da “Boneca”. Ela sim era a sua melhor confidente: secava-lhe as lágrimas na lã grosseira, escondia-lhe os segredos nos olhos meigos…só não a podia aconselhar a dar outro rumo às suas manhãs agoniadas e a maneira de se ver longe das agressões na escola.

Rosa Alentejana Felisbela
02/06/2018
(imagem da net)

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