sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um recado bem dado


Quando se abria mais um dia ao trabalho da madrugada, saía o senhor António do sono e da cama, onde ainda dormia a sua Maria. Trazia a camiseta branca sobre o tronco de barriga avantajada, e vestia as calças de suspensórios sobre as ceroulas curtas de tanto serem lavadas. Atava os cordões das botas baixas enquanto abria a boca num bocejo e espreguiçava o corpo entorpecido da curta noite. Dirigia-se à casa de banho improvisada, lavava o rosto no lavatório, e passava a água pela cabeça calva, pelo pescoço e pelas axilas esfregando com o sabão azul da cor dos sonhos. Só depois vestia a camisa desbotada, mas limpa, e subia os suspensórios. A rotina de quem tinha uma mercearia onde tudo se comprava, desde o açúcar em cartuchos de papel de manteiga, os cereais a peso, mantidos nas tulhas de madeira, a carne fresca acabada de cortar, o mel mais puro, a renda para a noiva ou o brinquedo para a prenda de Natal. Nessa altura, o tecido era cortado a metro e os sacos eram de serapilheira. Nesse tempo, conheciam-se as pessoas pela “alcunha” que a aldeia dera aos antepassados. O senhor António era conhecido por “Ceroulas”, peça de vestuário que os familiares deverão ter usado desde sempre e ele não fugia à regra. Não gostava que o lembrassem. Ficava zangado e rabugento quando falavam nessa palavra. Naquele dia, quis o destino que a filha da vizinha da frente, menina de 6 anos, educada mas irrequieta, entrasse na mercearia com um recado da mãe. Trazia as tranças ao vento, num desassossego de olhos brilhantes e vestido de chita garrido. Os calcanhares batiam na calçada como castanholas barulhentas. Afastou as fitas penduradas na porta e entrou como um vendaval dizendo: “Bom dia! A minha mãe manda perguntar se o senhor cuecas tem ceroulas…”. O senhor António, de cenho franzido olhou para ela, e reparando que não havia mais ninguém no estabelecimento comercial, soltou uma gargalhada e disse: “Bom dia…Tenho, tenho! Leva lá para a mãe ver se são destas”.

Rosa Alentejana Felisbela
14/12/2018
(imagens da net)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Estrela cadente


Era um conto
nascido e encantado

nas mãos no olhar
no colo tão amado

e mesmo no crepitar
da lareira de amor

-com o tempo parado-

era um sorriso
de chocolate quente

um conselho conciso
uma palavra confidente

era um perfume
a pinheiro de Natal

e o terno resplendor
da lembrança especial

era a manta aconchegada
era a família presente

uma luz na escuridão
uma estrela cadente…

Rosa Alentejana Felisbela
13/12/2018
(imagem da net)

domingo, 9 de dezembro de 2018

Eterno


Chamo o teu nome
num sussurro branco

ouço o ranger
de pegadas gravadas
na neve

olho o teu lugar guardado
no banco

e o meu coração
que fica tão leve…

Rosa Alentejana Felisbela
09/12/2018
(imagem da net)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O brinco de ouro

Porque é Dia Internacional da Pessoa com deficiência

Naquele momento, as suas mãos meigas e redondas, de dedos curtos, acariciavam com ternura aquele objeto dourado. Nos seus olhos castanhos amendoados, existia apenas o universo da mãe, e agora aquele brilho.
Horas antes, pensava a mãe que a sua altura, apesar de menor do que o habitual, não acompanhara a sua mente. Tudo era lento no seu dia, desde que se levantava até que se deitava. Tinha as suas rotinas, devido à vulnerabilidade em termos de saúde, uma condição que o acompanharia para o resto da vida.
Era domingo, dia de ir à missa. Sem uma noção exata do que se passava, sabia que iria sair, dada a forma carinhosa como a mãe o vestia e calçava, sempre a conversar sobre um “Deus” que iria ver, aquele que o guiaria na vida. Não percebia, já que era a mãe a conduzir o carro, a levá-lo onde ele necessitava, mas estava de bom humor e fez tudo o que ela pediu sem reclamações.
Ao sair do carro, de mãos dadas com a mãe, reparou num cachorro que caminhava ali perto, de aspeto escanzelado, com as costelas mal cobertas por um pelo sarnento e a língua de fora. Puxou a mão da mãe e balbuciou as palavras “mamã, tem ome, dá papa”, ao que a mãe respondeu “agora não podemos ajudá-lo, meu amor, estamos com pressa”. Mas ele não se deu por vencido, de olhos lacrimosos colocou o seu ar mais melindroso possível e voltou a referir “tem ome, mamã”…E a mãe, com a sua paciência habitual, revolvendo o interior da mala onde tudo cabia, até a firmeza e a condescendência, retirou um saco com três bolachas e acabou por coloca-lo nas mãos sapudas do filho para ele dar ao animal. Desta forma, puderam prosseguir o caminho para a missa. A mãe enxugando-lhe as lágrimas e limpando-lhe o nariz. Agora sim, levava um sorriso no rosto.
Ao chegar à entrada, encontraram as “amigas” da mãe, sempre vestidas e perfumadas como se tivessem saído de uma das montras das lojas que ela o levava a ver à baixa da cidade. Sabia que teria que se deixar cumprimentar, mas não gostava de sentir o rosto molhado por aqueles lábios aos quais não estava habituado e encolheu-se atrás do corpo da mãe.
Sobretudo, detestava experimentar o perfume da senhora gorda que lhe esborrachava ainda mais o pequeno nariz achatado com os seus abraços. Embora não dissesse nada, segurava a respiração naqueles escassos momentos e só voltava a expirar e inspirar quando já tinha passado.
Da mesma forma que não gostava dos afagos no seu cabelo liso e fino, acabado de pentear pela mãe. Aquelas mãos de unhas de gel florescente da amiga alta e magra deixavam-no desconfortável, pois sabia que ela iria arruinar os esforços da mãe para o manter apresentável. Deslizava lentamente para as costas da mãe e aí ficava.
Acontecia sempre o mesmo tipo de conversa que ele não entendia “Tão bem vestidinho, apesar da doença parece um menino bem comportado”. A mãe engolia as palavras de latrina que lhe ocorriam por estarem perto da casa de Deus e repetia “Ele não é doente, é apenas um menino com outras qualidades e necessidades. Acredito que o tempo lhe vai proporcionar uma vida normal. Com licença”. E retiravam-se para dentro da igreja, numa fuga para a calma que exigia ter um filho com síndrome de Down, criá-lo sozinha e proporcionar-lhe a educação inclusiva que merecia.
Era na igreja que a mãe rezava e pedia a força necessária para sonhar com um mundo em que o filho não fosse visto como o “coitado”, mas como a pessoa mais doce e com o melhor coração que a sociedade alguma vez iria ter.
Sentavam-se num banco, assistiam a toda a eucaristia e voltavam para casa mais tranquilos.
Mas nesse dia, aconteceu o insólito. Uma das damas perdeu um brinco de ouro. O alarme foi dado entre as pessoas no final da missa e todos pareciam baratas tontas a tentar descobrir o famoso brinco.
O menino nem sabia o que significava aquela palavra, mas procurava com a mãe, debaixo dos bancos, nos cantos de azulejos, nos buracos escondidos…Uma confusão estava instalada. O menino aborrecido foi para a entrada da porta.
Ao olhar para o degrau descobriu algo brilhante e pegou-lhe. Observou e tornou a observar, com a sua língua de fora e foi ter com a mãe. Perguntou “mamã ito é?”.
Quando a mãe viu o que ele tinha na mão, retirou-lho com cautela, sem que ninguém visse, e foi entrega-lo à dona, dizendo que o tinha encontrado atrás de um banco.
Segurou na mão do filho, beijou-a muito e disse em segredo “Muito bem, meu amor, era o brinco da senhora. Entregámos à dona, agora vamos para casa”.
Ele nunca chegou a entender, mas a mãe protegeu-o dos olhares e comentários que adviriam daí. Porém, sabia que o seu filho era a melhor pessoa do mundo, nunca ficaria com algo que não lhe pertencesse, pois o seu coração era enorme. Não era a altura de o deixar sofrer as maldades dos adultos.

Rosa Alentejana Felisbela
03/12/2018

dureza


A dureza da vida ajuda a remendar o coração, mas não o cura...
Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)