quinta-feira, 31 de maio de 2018

Retrato da memória

Tantas vezes olhara aquele retrato pregado na parede sobre o sofá da sala, que já nem ligava à manta de renda colorida, oferecida pela sogra, que sobrava de grande nos braços do mesmo. Detestava aquele pedaço de tempo jogado fora, que a esposa adorava. Para ele, não enfeitava, empobrecia a pouca graça que tinha aquele sofá, já por si, fora de moda. Contudo, as vontades da esposa eram sempre respeitadas. Olhava novamente o retrato. Eram tão novos, enjaulados naquela tela, por um casamento adolescente. Ela vestia o branco por todo o corpo e alma, de olhos cintilantes, roubando o azul ao mar de papoilas defronte da sua janela, trazia na boca os bagos da romã, e nas faces o rubor dos sonhos ainda virgens. Nas mãos níveas, havia um buquê de flor de laranjeira exalando o perfume a pureza. Aquelas mãos, que amassavam o pão, que temperavam a comida deliciosa de todos os dias, eram as mesmas que lhe percorriam o corpo à noite e lhe abençoavam os desejos de marido, sempre desejoso. Os cabelos loiros, apanhados em cachos no cimo da cabeça, seguravam o véu sobre um céu estrelado colado ao vestido de princesa. Estava tão linda, de pingentes de cor pérola nos brincos e no decote…Aquele decote que o inebriava e despertava a luxúria da boca. Aquele decote que alimentara os 3 filhos. Aquele decote era o seu orgulho de macho, que preferia que ela não exibisse em demasia, como fizera no dia do casamento, para não alimentar os olhares desprezíveis e invejosos dos seus amigos. Na sua opinião, uma mulher não deve exibir-se, para não provocar a lascívia nos homens. E uma mulher que é mãe, deve ficar em casa, medindo e pesando as crianças, dividindo o seu tempo entre as tarefas da casa e o seu marido, nunca a perder tempo com as amigas pelos cafés a lanchar e rir alto. Não fica bem a uma senhora. Voltando ao quadro, via agora os seus próprios cabelos, negros e encaracolados, o pescoço alto, a testa a evidenciar a futura careca, os olhos castanhos trancados a sete-chaves para não se ver o orgulho na mulher, o nariz adunco respirando quase todo o ar que a rodeava, a boca coberta da barba cerrada, sorrindo de lado, para disfarçar o embaraço da mão dela sobre o braço. Lembrava-se que quase tivera uma ereção (perdoem-me as mentes mais púdicas por esta memória), só pelo facto de ela lhe tocar no braço, durante a fotografia. Todo o seu corpo coberto de um frenesim azul-escuro, de fazenda talhada pelas mãos de sua mãe. Levava constantemente a mão à gravata apertada, que lhe abafava o grito pela noite, que nunca mais chegava. Ainda sentia as dores nos braços, devido aos tijolos e aos baldes de massa que carregara até à noite anterior, para construir a casa que se comprometera a terminar, para arranjar o dinheiro e pagar a boda. Um pedreiro não escolhe as horas, conta os dias e cada centavo para poder fazer-se à vida. Ela ainda tinha as costas doridas das costuras, mas não se queixara de ter que terminar os seus 30 pares de calças de homem, para conseguir o dinheiro para as cortinas da casa. Uma costureira queima as pestanas, mesmo junto ao candeeiro de petróleo nas noites escuras, mas não se rende até ao dia mais feliz da sua vida. Era notório que se amavam. E quando a noite chegou, ao tirarem aquela foto junto da árvore, com a lua grávida de esperança sobre o castelo ao longe, farrapos de nuvens rasgavam o vestido num desejo arrebatador. De repente, olha para o lado e ao vê-la entrar, de vestido novo e cabelo arranjado, os seus olhos saltitam como duas borboletas em torno dela. Ouve-a dizer: “Amor, o jantar está no micro-ondas e os miúdos já estão deitados. Fica bem. Lembras-te que hoje é dia de sair com as minhas amigas, certo? Adoro-te.” Beija-o na face e sai a correr. Ele sorri e pensa: “Como mudamos com o tempo!” Senta-se sobre a maldita manta e acende o televisor. A noite ainda agora começara…
Rosa Alentejana Felisbela
31/05/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Meus olhos de bem-querer


És pássaro
com pouso seguro
voando levado
pela brisa cantadeira

e a tua asa é muro
escondendo carinhos
de folhas trepadeiras

teu nome é piado
que a boca apaga
na flor da laranjeira

é breve é tesouro
guarida de nuvem
ou de erva rasteira

e o teu banho de lua
é arrufo de penas
a estremecer

no espelho dos meus olhos
de bem-querer

Rosa Alentejana Felisbela
27/05/2018
(imagem da net)

terça-feira, 29 de maio de 2018

frio

Sinto um frio
que transpira a alma!
Não há calor nas atitudes,
e as palavras
voam ao vento noturno...

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Pesadelo de domingo à noite

Na insónia da noite, um muro fantasma acompanha o poço silencioso da minha silhueta, curvada pela solidão de domingo. Caminho em passos lentos, sobre a terra, onde ainda é madrugada. A terra é fermento, é raízes mortas, pedaços de pensamento agarrados ao musgo das rochas. Tenho feno seco no rosto, sedento. A linha dos meus lábios é a única de água. Todavia, escuto o germinar do grão do ciúme, ouço a semente a formar-se, e o caule a percorrer o seu caminho de luz da lua. Vejo o fruto intocado dentro púcaro da tua boca. Ela que me mataria a sede inventa uma desculpa e foge. Começo a deslocar-me mais rapidamente, corro e persigo-a até à varanda da tua casa, onde pousa na janela aberta e desaparece, com a brisa. Ousa escorregar para o interior. O meu coração agarra-se às grades da tua ausência. Dispara em silêncio o peso do teu nome, uma e outra, e outra vez. Nenhum som. Nenhum espaço é preenchido pela tua sombra. A noite esvai-se em pétalas de cravos noturnos sobre o horizonte. Os meus olhos, raiados de sangue, recusam-se a perder a fé no sono. Mas o que resta de mim? Uma moldura humana caminhando ao som do matraquear dos ossos. Uma vagabunda arrastando a magreza das roupas pelo chão aberto de par em par. Uma vadia atirada para a cratera, sem dinheiro nem charme para acender um cigarro. Se ao menos tivesse um vestido vermelho e um salto alto, poderia prostituir a verdade e encontrar um fio condutor. Um fino fio de fumo ergue-se na escuridão e percebo que é segunda-feira. Estou sentada na cama, evadida na espera, de braços estendidos ao redor do coração. Percebo que se abriu uma pedra, em locais puídos dentro de mim e nasceu uma árvore. Tento subir ao cimo dos ramos e colher o sol. Apenas deste modo, descobrirei os mistérios que a noite encarna. O desapego renasce-me nas mãos e eu…abandono a cama num duche que me lava do “sim”.

Rosa Alentejana Felisbela
28/05/2018
(imagem da net)

domingo, 27 de maio de 2018

Estilhaços de poesia


Secou-se o sabor
no palato
desde a tua partida -
Amor maior

O teu retrato
deitado de bruços
sobre o papel

E meus olhos vagos
de soluços, gemendo,
choram a cópia

do teu abraço
esculpido
a cinzel no pensamento

e no céu tornado chão
estrelas lastimam traços
vagam errantes no coração

e eu, engulo verbos
colo estilhaços
de poesia – minha paixão.

Rosa Alentejana Felisbela
27/05/2018
(imagem da net)

sábado, 26 de maio de 2018

O tempo da solidão

Sabemos que há tempo para tudo: para estar com a família, para estar com os amigos, para trabalhar, para ficar só…Mas, a solidão junta poeira sobre os móveis, rolos de cotão debaixo deles, calcário sobre as louças da casa de banho, negrume no fundo da sanita e nas juntas dos azulejos, e a loiça suja, acumulada, não encontra o caminho da máquina de lavar, bem como a roupa coberta de nódoas não sabe que outro lugar ocupar, senão a caixa a abarrotar, e o cheiro, nauseabundo, fica pairando nos cantos das divisões, onde aranhas tecem as suas teias. E a vida acontece lentamente, como nos filmes de Manoel de Oliveira, ou em slow motion, nos olhos tristes. O corpo obedece à batalha travada com o despertador, os pés descalços procuram, com esforço, a porta do duche, e as mãos percorrem a pele cheia de espuma, tentando lavar as pequenas lembranças de momentos felizes. A toalha perfumada é a única carícia que consola o corpo, enquanto o espelho reprova a silhueta, outrora bonita e jovem e sedutora. A roupa enrugada, pela falta de um ferro, parece diminuir as medidas, de cada vez que a veste. E de forma automática corrige a rota dos estudos dos filhos, acompanha a profissão da cara-metade, compra o medicamento para a idade avançada dos pais, vai dar comida ao gato do vizinho, que foi de férias para o Brasil, deixa os livros que queria ler sobre a mesa-de-cabeceira a ganharem pó. O trabalho refaz-se, cada vez com menos vontade. O objetivo é viver, é cumprir, é ajudar. Todavia, aguarda o poema, de costas viradas. Vê apenas a sua silhueta nas pétalas vermelhas do crepúsculo. E sabe, que nunca voltará. O tempo não volta atrás.

Rosa Alentejana Felisbela
26/05/2018

Alma nublada


"Se a minha alma pudesse falar diria:
hoje nem chovo, nem faço sol!
Há um misto de céu nublado
- sem promessas!"
Rosa Alentejana Felisbela

quinta-feira, 24 de maio de 2018

O pardalito

Da vida conhecia o eclodir da casca, mais o bico que lhe saciava aquela dor aguda na zona do papo com insetos, e ainda as penas das asas que o aconchegavam num remanso quente e protetor. Tinha no corpo a penugem parca de quem nada sabe da vida. Nem sonha ainda, naquele imaginar de pássaro, com o voo da liberdade. A sua restringia-se ao ninho esférico, com entrada lateral, feito de pequenos ramos, penas, papel, algodão e outras fibras, entre as telhas da dona Arminda, e ao som contínuo de outros bicos e outros corpos igualmente quentes e igualmente insaciáveis a seu lado. Os dias passavam entre a claridade que as folhas da árvore, que ficava na frente, deixava entrar, e a escuridão, que as noites teciam ao seu redor. Até àquele dia, todos foram iguais. Naquele dia, ouviu um ronronar distante, que foi transformado numa enormidade de escuridão repentina. Justamente naquele dia, o dia ficou noite. E algo entornou liquidamente o ninho, impregnando a penugem, os pequenos ramos, as penas, o papel, o algodão e outras fibras, lançando pesadas bátegas sobre o seu corpo e sobre os outros corpos. Perdeu a noção do local aprazível. Rolou sobre as telhas, derramou-se pelo beiral, caiu inanimado, felizmente, sobre o tapete da entrada da casa da dona Arminda. Ela era octogenária. Vivia sozinha no seu ninho de solidão. Os filhos emigrados naquela procura de um futuro melhor, e ela só, naquele isolamento de quem perdeu o marido para a morte do coração. Vestida de negro, com um coração colorido, as mãos roliças de ternura, e o corpo pesado dos anos, fazia dos dias a renda da luz que via, através das folhas da árvore nascida na frente da sua janela. Comia as sopas que preparava com as horas ermas. Tinha medo das trovoadas e rezava: “Santa Barbara pequenina/ Se vestiu e calçou/ Seu caminho caminhou/ Jesus encontrou/ E Ele perguntou/ Barbara, onde vais?/ Senhor, vou para o céu,/ Abrandar a trovoada/ Que sobre nós anda armada/ Manda para o monte do rosmaninho,/ Onde não haja pão nem vinho/ Nem ramo, nem maneira/ Nem folhinha de Oliveira.” E quando a trovoada passou, dona Arminda abriu a porta e encontrou o pardalito, quase ser nascente, quase ocaso dormente. Pegou-lhe com as mãos de ternura, levou-o para a manta do aquecedor, ali o colocou com os carinhos da mãe que aconchega o filho do frio. Passaram minutos e horas, até ao momento em que o pardalito renasceu de penugem seca e papo esfomeado. Porém, dona Arminda não queria a sua prisão. Abriu a janela da sua solidão, e deu-lhe sementes de milho e de amor…Quem sabe quanto tempo iria ali ficar?

Rosa Alentejana Felisbela
24/05/2018
(baseado numa história quase verdadeira e a foto é da Ana Nunes Ribeiro)

domingo, 20 de maio de 2018

Sem razão


Deixo voar a razão
p’las ruas em que acredito
de paredes de cal
de chão empedrado
de telhas do beiral
bendito

pousara o sonho de um dia
preso na voz, preso num grito
quebrado em estilhaços
nos olhos, nas mãos
nos cabelos enfeitados
de laços de magia

E o sangue escorrendo
bárbaro, violento
ensombrando a distância
de gemidos, de abraços
escolhidos p’la força
duma única solidão

Quedo, na rotunda da praça
onde a estátua indiferente
de um amor que foi presente
e hoje não tem solução
abre as mãos à desgraça

segue como vasto rio
pelas aldeias, e vilas
cidades e moradias
num frio amargo, vilão,
desaguando no mar
numa eterna gradação

Rosa Alentejana Felisbela
20/05/2018

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Lúcia


(Esta história é pura ficção)

A saia comprida rodava num rodopio veloz enquanto dançava. O verde dos olhos embrenhava-se no desejo de cada cigano em idade casadoira, tremeluzindo à luz dos candeeiros a petróleo. Os cabelos presos numa trança balouçavam ao ritmo da viola e das palmas, ao redor da fogueira. O perfil perfeito recortava-se no escuro da noite e a pele trigueira do corpo voluptuoso, era a chama que incendiava a líbido do sexo oposto. Lúcia era a cigana mais bonita do acampamento. Ninguém diria que tinha doze anos. Ninguém entendia porque os pais a deixavam frequentar a escola. Desconheciam a razão pela qual o pai nunca a tinha prometido a alguém das suas lidações. O orgulho que sentia na sua Lúcia impedira-o de tomar decisões. Porém, a barraca começava a tornar-se apertada com tantas propostas, os dotes oprimiam a vontade férrea do pai e a mãe mortificava-se com o futuro, que pretendia promissor, para a sua filha. Todavia, Lúcia era feliz, com os seus brincos de esmeraldas, os seus colares a condizer, as suas roupas mais próximas dos modelos das meninas “não ciganas” e a escola era o brinde que a encantava. Diferente das irmãs e das primas, aprendera a ler, escrever, contar e ser. Num mundo de tabus, ela contava com a amizade dos “gadjés” e apreciava a companhia do Tony. O seu colega de carteira deslumbrava-lhe as ideias, tolhia-lhe a atenção sempre que falava. Envolvia-a num admirável mundo, que ela desconhecia. Embevecida, aprendia cada significado, cada caminho, cada costume. Nos recreios conversavam, sempre que os da sua etnia não estavam por perto. Encontravam-se atrás do ginásio, num desafio à sorte, que poderia ser fatal para ambos. Foi nos lábios do Tony que Lúcia descobriu o primeiro beijo, aquele roçar num repente excitante. Foram os braços de Tony que a enfeitaram de afagos. E no campo de trigo, próximo da vedação da escola, descobriram o prazer dos corpos. Foi um primo que os descobriu num momento de distração. Que levou a novidade aos ouvidos dos ciganos. Tony foi caçado como um animal, e os predadores arrancaram-lhe os olhos. Tony morreu esvaído em sangue. Os responsáveis, impunes, seguiram as vidas em lugares longínquos. Lúcia foi humilhada e excluída da família cigana. Os seus pais, depreciados, desapareceram a jusante do rio num barco. Lúcia fugiu para casa de amigos distantes. Hoje é advogada de causas que considera importantes, como o direito à escolha de noivo e outras semelhantes. Nunca mais esqueceu o Tony. Nunca casou, mas isso tornou-se pouco relevante.

Rosa Alentejana Felisbela
18/05/2018
(imagem da net)

quinta-feira, 17 de maio de 2018

A Ti Maria


A casa cheirava ao mofo do tempo. Os móveis, de madeira escura, erguiam-se como fantasmas pelas divisões. Como encomendas entregues pelo carteiro, que não haviam sido abertas, mas abandonadas pela casa. Eles refletiam vidas passadas, com molduras de madeira e rostos, a preto e branco, de homens com chapéu e laço, ou de mulheres de cabelos ondulados pelo calor do ferro. A poeira pousada na zona onde os naperons de renda branca, já sujos, feitos manualmente pela dona da mesma, não tapavam, dava ao local um ar de abandono saliente. As cortinas da cor do vinho tinto, pesadas e com o perfume a urina de gatos, encontravam-se apanhadas, na parte lateral, por uma corda dourada, e pompons que arrastavam pelo chão. Na cozinha, as “sopas de tomate” tornavam o ar menos pesado, mais acolhedor. Mas a quantidade de loiça de alumínio azul, usada há dias atrás, empilhada sobre os locais disponíveis, deixava o estômago embrulhado. A cama, com a coberta feita de quadrados de lã coloridos, era o lugar preferido dos doze gatos que frequentavam a casa da Ti Maria. Viúva desde que a conhecera, Bárbara, de 10 anos, era a única que lhe entrava pela porta e ficava horas a ouvir as suas histórias. Contava-lhe das saídas diárias, pelas madrugadas frias, de um rancho de mulheres (do qual ela fazia parte) rumo aos campos para ceifar, das modas para esquecer os dias difíceis da “amesturação”, dos dias quentes com os lenços a proteger a cabeça, das camisas de mangas compridas, e abotoadas até ao pescoço, das saias apanhadas ao centro das pernas com uma “pregadeira”, das botas subidas até meio da perna e das meias de renda grossa. Devido à posição para a ceifa, as dores na coluna ficaram como lembranças ferozes. Contava dos “balhos” no átrio de terra batida das casas e das cantigas à desgarrada, de improviso, com as “gaitas-de-beiços” a acompanhar. Dos namoros à janela e dos beijos roubados. Tudo isso encantava Bárbara, que gravava na memória cada um dos pormenores. Esses, e as novidades que vinham de França, pela mão das filhas da Ti Maria, em cartas que ela não sabia ler. Nas ditas cartas, lidas com entoação e rigor, havia notícias do neto da mesma idade de Bárbara, por quem esta nutria um amor platónico. A resposta não se fazia esperar, e era Bárbara quem a redigia, com a sua caligrafia impecável: “minha querida filha, como estás? Nós por cá vamos bem…” e quando as despedidas chegavam com “muitos beijinhos ao “José, ao João e ao Luís”, os dedos tomavam asas e viajavam justamente até ao rosto daquele amor adolescente. Bárbara viajava nas cartas, fechadas com a saliva dos lábios que nunca beijaram o Luís, e o seu coração palpitava dias e dias na esperança de uma resposta. Mas a Bárbara cresceu, fez-se mulher e nunca foi correspondida naquele amor. Mas ficou mais rica emocionalmente, por ter contribuído para a companhia da solitária Ti Maria, por ter guardado na memória todas aquelas histórias transformadas em património da história oral, e por ter aprendido que o amor unilateral não leva a casamentos. A Ti Maria encontrou algum alento em Bárbara, até ao final dos seus dias.

Rosa Alentejana Felisbela
18/05/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 16 de maio de 2018

A Bia dos trapos


Ela era a louca da terra. Chamavam-lhe a “Bia dos trapos”, mas ninguém a conhecia realmente, nem sabia ao certo a sua idade, tal era o constrangimento de a olhar de frente. Desde cedo, cartografara as ruas da vila. A pé. Os sapatos castanhos e gastos, quase sem solas. Não aceitava a ajuda do vizinho sapateiro. Ele dizia que não lhe cobrava nada para os consertar, mas ela via sempre uma intenção escondida. Pensava “quando a esmola é muita…”e continuava, noite e dia, nas suas andanças. O nome que lhe davam devia-se à quantidade de roupa que vestia, geralmente desencontrada. Usava meias às riscas nas pernas magérrimas. Cobria o corpo delgado com um vestido de linho branco, enfeitado de meias-luas pretas, e sobre este, uma “combinação” azul-turquesa. Ao pescoço, enrolava um cachecol com flores garridas, embora as temperaturas chegassem aos quarenta graus na rua. Um avental com losangos vermelhos e rosa completava a indumentária. Dos cabelos, viam-se fiapos, por baixo do gorro branco encardido. Trazia no rosto a pele curtida pelo sol e pelo vento, olhos miudinhos como azeitonas negras e lustrosas, um nariz de beterraba, grosso e vermelho, uns lábios finos e a língua sempre afiada para escandalizar o povo, quando alguém a abordava. Não gostava de conversar, não se detinha com as ladainhas das velhas da terra. Não admitia diálogos com as crianças, sobretudo porque corriam atrás dela gritando “Bia dos trapos, onde vais? Cuidado não tropeces, ou ainda cais!” Num acesso de fúria, corria-lhes no encalço, de cajado na mão. Não porque tivesse dificuldades em andar, mas para os “zurzir”, acaso apanhasse algum. Sorte a deles, serem mais rápidos. Percorria léguas durante os dias. Catava ramos de árvores partidos pelas estradas, pedaços de tecidos rasgados, latas de refrigerantes vazias…Tudo lhe servia para carregar às costas. Por vezes, atava o espólio com cordas e passava pelas ruas numa enorme azáfama. O suor a escorrer-lhe pelas têmporas e a magreza reclamando um pouco de paz. Nunca se soube bem de que se alimentava. Provavelmente de algum naco de pão, ou de outros restos de comida retirados do lixo. As pessoas habituaram-se à sua presença, mas o receio das suas reações. mantinha-os afastados. Deixou de aparecer nas ruas durante uns dias. Os homens da GNR foram bater-lhe à porta. Ninguém respondeu. Forçaram a entrada. Encontraram a Bia caída, morta, sobre os trapos que recolhera toda uma vida. Os sapatos arrumados atrás da porta. O cheiro fétido envolvia todas as divisões e o lixo acumulado demorou dias a ser extraído da casa. O corpo da Bia nem foi velado. Enterraram-na no cemitério por ordem da Junta de Freguesia, numa vala qualquer. Perdeu-se o nome e o rasto. Nem placa de saudade. Nem “Aqui jaz uma mulher”. Ficou-me na lembrança a “Bia dos trapos”. Apenas na memória algumas histórias continuam a viver.

Rosa Alentejana Felisbela
16/05/2018
(imagem da net)

sábado, 12 de maio de 2018

viver


Urge viver com o que temos, não é?

Lenda


Moura, que nasces nos olhos das manhãs encantadas, cantando canções outrora amadas e irresistíveis! Sabes, agora, o caminho errado que leva o chão pisado pela surpresa. Conheces, neste momento, o choro das aves ausentes. Não te alimentam, nem te seguram o ninho de barro. Voam felizes a liberdade de se encontrarem sobre o mar, nos nichos dos penedos. E tu? Que fazes com o teu tempo? Gastas os últimos pousos que o sol faz sobre as searas de vento agitadas. E os teus cabelos deixam que a cor das pombas os abracem. Deixas que as rugas descrevam os caminhos nos socalcos da tua pele. Deixas que a esperança permaneça entre os corpos abraçados no desvio da estrada. Desces os degraus das flores-da-laranjeira da igreja, como noiva vestida de negro, com a promessa pelo braço, por um mouro que nunca voltará. Carregas as lágrimas malfadadas dentro do olhar de sombras. Ensurdeces perante as palavras (ditas) de amor. Mas ele morreu na guerra travada por nova terra, novo ar rarefeito, nova aventura. Tatuou na margem do ombro direito o perfume da tua pele, mas elevou a mão esquerda na tentativa de salvar o último poema. Deu à costa na praia da imaginação com um dos olhos nublados de graça, mas a boca fechada não voltará a suspirar “adoro-te”. Bebeu corais e pérolas e anémonas, porém, não se recordará mais de ti. Por isso, acorda os ninhos e as cores das flores, porque a prisão que tens dentro, não te deixará jamais! Mas o teu olhar brando, pode fazer o pacto com o rio da ilusão. Quem sabe, um dia irás voar o voo dos anjos capazes?

Rosa Alentejana Felisbela
12/05/2018
(fotos tiradas por mim)

quinta-feira, 10 de maio de 2018

que amor...?


O amor desabrocha
nas páginas da vida...
Umas vezes, de forma viçosa,
outras vezes murcha e morre...

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

em que esquina...


Cada grão passa
com a pressa que o tempo tem...
E nada volta a ser igual.
Apenas o amor evoca a âmpulheta
meio cheia...ou meio vazia,
conforme o tamanho da esquina
onde nos encontramos um dia.

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Viver de amor


Amo-te daquela maneira mimosa e única, que é perfume e seda na pele!
Amo-te e não preciso de te explicar, apenas VIVER!
Rosa Alentejana Felisbela​
(imagem da net)

domingo, 6 de maio de 2018

Renascido


O branco puro
conspira
nas pétalas
pelo amor
renascido
na rosa

Rosa Alentejana Felisbela