sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Um recado bem dado


Quando se abria mais um dia ao trabalho da madrugada, saía o senhor António do sono e da cama, onde ainda dormia a sua Maria. Trazia a camiseta branca sobre o tronco de barriga avantajada, e vestia as calças de suspensórios sobre as ceroulas curtas de tanto serem lavadas. Atava os cordões das botas baixas enquanto abria a boca num bocejo e espreguiçava o corpo entorpecido da curta noite. Dirigia-se à casa de banho improvisada, lavava o rosto no lavatório, e passava a água pela cabeça calva, pelo pescoço e pelas axilas esfregando com o sabão azul da cor dos sonhos. Só depois vestia a camisa desbotada, mas limpa, e subia os suspensórios. A rotina de quem tinha uma mercearia onde tudo se comprava, desde o açúcar em cartuchos de papel de manteiga, os cereais a peso, mantidos nas tulhas de madeira, a carne fresca acabada de cortar, o mel mais puro, a renda para a noiva ou o brinquedo para a prenda de Natal. Nessa altura, o tecido era cortado a metro e os sacos eram de serapilheira. Nesse tempo, conheciam-se as pessoas pela “alcunha” que a aldeia dera aos antepassados. O senhor António era conhecido por “Ceroulas”, peça de vestuário que os familiares deverão ter usado desde sempre e ele não fugia à regra. Não gostava que o lembrassem. Ficava zangado e rabugento quando falavam nessa palavra. Naquele dia, quis o destino que a filha da vizinha da frente, menina de 6 anos, educada mas irrequieta, entrasse na mercearia com um recado da mãe. Trazia as tranças ao vento, num desassossego de olhos brilhantes e vestido de chita garrido. Os calcanhares batiam na calçada como castanholas barulhentas. Afastou as fitas penduradas na porta e entrou como um vendaval dizendo: “Bom dia! A minha mãe manda perguntar se o senhor cuecas tem ceroulas…”. O senhor António, de cenho franzido olhou para ela, e reparando que não havia mais ninguém no estabelecimento comercial, soltou uma gargalhada e disse: “Bom dia…Tenho, tenho! Leva lá para a mãe ver se são destas”.

Rosa Alentejana Felisbela
14/12/2018
(imagens da net)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Estrela cadente


Era um conto
nascido e encantado

nas mãos no olhar
no colo tão amado

e mesmo no crepitar
da lareira de amor

-com o tempo parado-

era um sorriso
de chocolate quente

um conselho conciso
uma palavra confidente

era um perfume
a pinheiro de Natal

e o terno resplendor
da lembrança especial

era a manta aconchegada
era a família presente

uma luz na escuridão
uma estrela cadente…

Rosa Alentejana Felisbela
13/12/2018
(imagem da net)

domingo, 9 de dezembro de 2018

Eterno


Chamo o teu nome
num sussurro branco

ouço o ranger
de pegadas gravadas
na neve

olho o teu lugar guardado
no banco

e o meu coração
que fica tão leve…

Rosa Alentejana Felisbela
09/12/2018
(imagem da net)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O brinco de ouro

Porque é Dia Internacional da Pessoa com deficiência

Naquele momento, as suas mãos meigas e redondas, de dedos curtos, acariciavam com ternura aquele objeto dourado. Nos seus olhos castanhos amendoados, existia apenas o universo da mãe, e agora aquele brilho.
Horas antes, pensava a mãe que a sua altura, apesar de menor do que o habitual, não acompanhara a sua mente. Tudo era lento no seu dia, desde que se levantava até que se deitava. Tinha as suas rotinas, devido à vulnerabilidade em termos de saúde, uma condição que o acompanharia para o resto da vida.
Era domingo, dia de ir à missa. Sem uma noção exata do que se passava, sabia que iria sair, dada a forma carinhosa como a mãe o vestia e calçava, sempre a conversar sobre um “Deus” que iria ver, aquele que o guiaria na vida. Não percebia, já que era a mãe a conduzir o carro, a levá-lo onde ele necessitava, mas estava de bom humor e fez tudo o que ela pediu sem reclamações.
Ao sair do carro, de mãos dadas com a mãe, reparou num cachorro que caminhava ali perto, de aspeto escanzelado, com as costelas mal cobertas por um pelo sarnento e a língua de fora. Puxou a mão da mãe e balbuciou as palavras “mamã, tem ome, dá papa”, ao que a mãe respondeu “agora não podemos ajudá-lo, meu amor, estamos com pressa”. Mas ele não se deu por vencido, de olhos lacrimosos colocou o seu ar mais melindroso possível e voltou a referir “tem ome, mamã”…E a mãe, com a sua paciência habitual, revolvendo o interior da mala onde tudo cabia, até a firmeza e a condescendência, retirou um saco com três bolachas e acabou por coloca-lo nas mãos sapudas do filho para ele dar ao animal. Desta forma, puderam prosseguir o caminho para a missa. A mãe enxugando-lhe as lágrimas e limpando-lhe o nariz. Agora sim, levava um sorriso no rosto.
Ao chegar à entrada, encontraram as “amigas” da mãe, sempre vestidas e perfumadas como se tivessem saído de uma das montras das lojas que ela o levava a ver à baixa da cidade. Sabia que teria que se deixar cumprimentar, mas não gostava de sentir o rosto molhado por aqueles lábios aos quais não estava habituado e encolheu-se atrás do corpo da mãe.
Sobretudo, detestava experimentar o perfume da senhora gorda que lhe esborrachava ainda mais o pequeno nariz achatado com os seus abraços. Embora não dissesse nada, segurava a respiração naqueles escassos momentos e só voltava a expirar e inspirar quando já tinha passado.
Da mesma forma que não gostava dos afagos no seu cabelo liso e fino, acabado de pentear pela mãe. Aquelas mãos de unhas de gel florescente da amiga alta e magra deixavam-no desconfortável, pois sabia que ela iria arruinar os esforços da mãe para o manter apresentável. Deslizava lentamente para as costas da mãe e aí ficava.
Acontecia sempre o mesmo tipo de conversa que ele não entendia “Tão bem vestidinho, apesar da doença parece um menino bem comportado”. A mãe engolia as palavras de latrina que lhe ocorriam por estarem perto da casa de Deus e repetia “Ele não é doente, é apenas um menino com outras qualidades e necessidades. Acredito que o tempo lhe vai proporcionar uma vida normal. Com licença”. E retiravam-se para dentro da igreja, numa fuga para a calma que exigia ter um filho com síndrome de Down, criá-lo sozinha e proporcionar-lhe a educação inclusiva que merecia.
Era na igreja que a mãe rezava e pedia a força necessária para sonhar com um mundo em que o filho não fosse visto como o “coitado”, mas como a pessoa mais doce e com o melhor coração que a sociedade alguma vez iria ter.
Sentavam-se num banco, assistiam a toda a eucaristia e voltavam para casa mais tranquilos.
Mas nesse dia, aconteceu o insólito. Uma das damas perdeu um brinco de ouro. O alarme foi dado entre as pessoas no final da missa e todos pareciam baratas tontas a tentar descobrir o famoso brinco.
O menino nem sabia o que significava aquela palavra, mas procurava com a mãe, debaixo dos bancos, nos cantos de azulejos, nos buracos escondidos…Uma confusão estava instalada. O menino aborrecido foi para a entrada da porta.
Ao olhar para o degrau descobriu algo brilhante e pegou-lhe. Observou e tornou a observar, com a sua língua de fora e foi ter com a mãe. Perguntou “mamã ito é?”.
Quando a mãe viu o que ele tinha na mão, retirou-lho com cautela, sem que ninguém visse, e foi entrega-lo à dona, dizendo que o tinha encontrado atrás de um banco.
Segurou na mão do filho, beijou-a muito e disse em segredo “Muito bem, meu amor, era o brinco da senhora. Entregámos à dona, agora vamos para casa”.
Ele nunca chegou a entender, mas a mãe protegeu-o dos olhares e comentários que adviriam daí. Porém, sabia que o seu filho era a melhor pessoa do mundo, nunca ficaria com algo que não lhe pertencesse, pois o seu coração era enorme. Não era a altura de o deixar sofrer as maldades dos adultos.

Rosa Alentejana Felisbela
03/12/2018

dureza


A dureza da vida ajuda a remendar o coração, mas não o cura...
Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Acordas-me


Às vezes apetece-me escrever-te desde a ponta mais sagrada dos meus dedos. Desfio cada fragmento de memórias e escrevo. Descrevo os suspiros entre as dermes, o rubor das faces afogueadas, o olhar penetrando as sinceridades e os dedos cruzados sobre os pensamentos mágicos do amor. Toda uma pintura de Klimt entre as nossas mãos. Recordas-te? O beijo eternizado no jardim aberto dos nossos peitos e o som crescente dos pássaros a roçar a orgia dos sentimentos abertos de par em par. E eu poetizando os nossos risos. E tu a quebrares as taças da alegria ao por do sol. Um momento feito de açúcar e canela na expectativa de um luar. Quando a lua sobe o monte despindo o véu do nevoeiro, reconhecemo-nos. Somos almas puras na constelação do porvir. Abre-se o sonho em mais uma noite de fascínio: aguardo que me venhas acordar na tua voz de desejo.

Rosa Alentejana Felisbela
30/11/2018
(imagem da net)

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

Tanto


Diz-me do meu amor brando
a brisa soprando
entre as cortinas

lembra-me dos lençóis brancos
amarrotados
pela luxúria divina

e na fachada de azulejos
que reverbera
nossos toques e beijos

escuta o som do jardim
das rosas crescendo
dentro do peito

é a nossa casa de amor
suportando o calor
de quem se quer tanto…

Rosa Alentejana Felisbela
26/11/2018
(imagem da net)

domingo, 25 de novembro de 2018

Chuva


Corre um rumor
de trovão
pela via-férrea

um tremor
um grito

- o apito estridente-

E a dor e o torpor
da despedida
iminente

mas voltas sempre
com o abraço
e o amor

e o coração
que sente

é a chuva que traz
a pureza
à alma da gente…

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Desistir é para fracos


O autoconhecimento deve ser a primeira premissa para agir de forma correta perante os outros. Se a autoestima denunciar alguma forma de medo, não é caso para desistir dos sonhos. Somos essencialmente humanos, e o medo faz parte do que é “viver”. Não como uma fraqueza, mas como uma defesa que existe desde os primórdios da humanidade. A pequena solidão que nos permite meditar sobre os factos deve fazer-nos companhia diária. Chorar é humano. Reinventar-se, reconstruir-se, seguir em frente estimula-nos a encarar os problemas. Ter dúvidas sobre a forma como resolvê-los é legítimo e torna-nos mais humanos. Dentro de nós há essa mistura a que chamamos “coragem” e que nos ajuda a curarmo-nos das feridas dos erros e a valorizarmos os acertos. Acertar na forma como procedemos com outro ser humano é uma questão de autoconhecimento e capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Desistir? É para fracos.

Rosa Alentejana Felisbela
23/11/2018
(imagem da net)

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

A alteração


O final da história...

O assistente operacional da Academia levantou-se da cadeira, assim que a Lena entrou. Cumprimentou-a com a cortesia habitual, e ficou a admirar as suas formas, assim que ela lhe virou as costas, a afastar-se para a aula de “pilates”.
Segundos depois entrou Carlos, com o seu saco de desporto, dirigindo-se aos balneários para trocar de roupa e encaminhar-se para a aula de “body combat”.
Ambos estavam desconcentrados inicialmente, mas com o decorrer das aulas divertiram-se e relaxaram.
Foi no corredor que o som das vozes foi abafado. Foi entre uma porta e outra que o mundo sucumbiu.
Foi no exato momento em que Lena saía, a conversar e a rir com colegas, que o marido a agrediu. Agarrou-lhe o “rabo-de-cavalo” e tentou arrastá-la para a rua. A sua violência verbal e física foi brutal e rápida. Ela, atónita, nem reagiu. O seu corpo batia nas paredes sem oferecer resistência.
Valeu-lhe Carlos, que se apercebeu da barbárie e empurrou o marido. Valeu-lhe Carlos que não ficou indiferente e o agarrou e colocou na rua. Valeu-lhe o assistente operacional que fechou a porta e chamou as autoridades. Valeu-lhe Carlos.
Quando ambos se olharam, Carlos reconheceu-a, abraçou-a com um abraço amigo, compreensivo.
Lena chorava agradecida. Entendia agora as reações do marido. Era aquela violência contida que a assustava. Não queria alguém de génio brutal a seu lado. A sua vida iria ser modificada a curto prazo.
Carlos procurou tratar das feridas externas de Lena. As internas demorariam um pouco mais, mas estava disposto a ajudar.
Voltariam a encontrar-se muitas vezes naquele local. Carlos estava otimista, mas não feliz. Vê-la triste e a passar por uma situação tão delicada, não era a sua forma mais apreciada de aproximação. Mas estava satisfeito por ter decidido, na semana anterior, ir para aquelas aulas, justamente na Academia que ela frequentava.
Lena estava destroçada, mas os colegas iriam ser suas testemunhas na acusação contra o marido. Nessa noite não voltaria para casa, mas para junto de amigas no domicílio destas.
O tempo seria o amigo de que precisava para refazer a sua vida…

Rosa Alentejana Felisbela
19/11/2018
(imagem da net)

domingo, 18 de novembro de 2018

Desmoronar


Nessa tarde, ela chegara a casa muito antes do marido. Pendurara a mala e a gabardina no bengaleiro e dirigira-se ao quarto para trocar as roupas que trazia vestidas pelas de treino e ténis. Amarrou os cabelos num “rabo-de-cavalo”. Tencionava ir à aula de “pilates”. Ajudava-a a descontrair e a focar-se nas coisas importantes da vida. Por certo também a mantinha em forma, mas esse era um objetivo secundário.
A sua cabeça fervilhava de ideias para enfeitar as montras da loja onde trabalhava. Contudo, também se preocupava com as atitudes que o marido vinha a demonstrar ultimamente.
Durante a aula também decidia o que fazer para o jantar do dia seguinte, a hora a que iria deixar as camisas do marido na lavandaria, quando teria tempo para ir comprar o cinto novo que ele lhe pedira…A professora chamava-a à atenção amiúde, pois ela andava desconcentrada.
Foi à cozinha comer uma maçã e beber um iogurte e pegava nas chaves de casa quando o marido chegou. Ao perceber a chave na porta, o seu coração deu um salto gigante e aguardou.
Ele entrou, olhou-a de soslaio, passou por ela embatendo o seu ombro no dela e foi até à cozinha. O rosto dela ruborizou de raiva e disse-lhe:
- Boa noite! Ao menos cumprimenta-me! Quase me magoaste…
Ele olhou para ela indiferente e respondeu:
- Estavas aí? Nem te vi! O meu jantar está pronto?
Ela nem respondeu, virou-se, caminhou decidida para a porta e saiu para a rua.
Encontrou o ar frio e cortante. Nunca encontrara a subida tão íngreme. Nunca as pernas lhe doeram tanto. Nunca o coração batera tão apressado. Nunca as lágrimas lhe tinham corrido com tanta rapidez pelas faces bonitas.
Perguntava-se onde errara. O que o levava a ter aquele comportamento. Ele que era tão meigo, tão doce antes do casamento, neste momento não o reconhecia.
Pensara que aquele amor seria eterno, que viveria feliz para sempre, mas passados dois meses, acreditava ter feito alguma coisa que o transformara. Talvez existisse outra mulher…

Rosa Alentejana Felisbela
18/11/2018
(imagem da net)

sábado, 17 de novembro de 2018

A curiosidade


Sacudiu a gabardina ao chegar ao parque de estacionamento. Aquela humidade enervava-o sobremaneira.
Sentia-a nas pestanas longas que lhe escureciam ainda mais os olhos, sentia-a nas maçãs salientes do rosto, ficava suspensa na barba aparada, como minúsculas pérolas periclitantes, e nas pontas do cabelo liso que lhe caíam suavemente sobre a testa, embora estivesse curto na nuca.
A gravata vermelha estava demasiado apertada, por isso, levava a mão ao nó e tentava ajustá-la, constantemente. Desde que vira aquela mulher que tudo o incomodava.
Desapertou o colarinho alvo da camisa, desabotoou o casaco do fato escuro de bom corte, deixando vislumbrar o cinto negro. Abanou as calças e bateu com os sapatos bem engraxados no chão. Tudo por causa da humidade. E ela nem sequer o tinha olhado nos olhos. Desejou poder voltar atrás, e dizer-lhe que achava inconcebível ela nem se ter dignado a olhá-lo nos olhos. Ele entregara-lhe o lenço…
Retirou as chaves da pasta que carregava, mas elas caíram sobre o chão húmido, ficando cobertas de uma mistura de folhas alaranjadas e terra. Contraiu os maxilares e abriu as narinas, tentando manter a calma sem praguejar. Não o fazia habitualmente, porém sentia-se desorientado. Uma leve raiva aflorava-lhe o pensamento. Aquela mulher…Nem lhe tinha visto o rosto.
Desconhecia qualquer pormenor da sua identidade, vira a aliança na sua mão e isso deixava-o impotente. Quando por fim, entrou no carro, ligou o ar condicionado e principiou a sentir-se mais calmo.
Todavia, quando virou o volante para passar na rua onde ela desaparecera, deixou-se inundar novamente pela curiosidade. Mas não sabia como voltar a encontra-la.


Rosa Alentejana Felisbela
17/11/2018
(imagem da net)

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Tarde


Era uma tarde alaranjada como qualquer tarde entardecida pelo outono. Corria uma brisa fria pelas ruas empedradas, escorregadias da humidade. E os tacões altos batiam ao ritmo apressado, afastando-se da multidão.
Sobre os sapatos azuis novos, caminhavam uns pés cansados, envoltos numas meias pretas que subiam pelas pernas torneadas, perdendo-se de vista quando os olhos chegavam à bainha do vestido de algodão bege.
O busto volumoso, cingido pelo tecido justo, oscilava seguro ao compasso dos passos. Um casaco grosso aos losangos bege e vermelho abraçava-lhe a silhueta. A cintura afunilava num espanto feito de idade verde.
Os cabelos loiros e longos, envoltos no véu diáfano do nevoeiro, completavam o quadro e as sombras emolduravam as formas da mulher.
Ao passar perto dele, inocente e ausente em pensamentos desconhecidos, de rosto coberto pelos cabelos, quis o destino que deixasse tombar um lenço sobre a calçada.
Ele, figura esguia encoberta pelas sombras do toldo da esplanada do café, acorreu solícito para lho devolver.
Ela parou surpreendida e olhou para a mão que segurava o lenço e agradeceu. Uma mão segurava a mala presa ao ombro direito, a outra, que estava livre, exibia uma aliança brilhante.
Agradeceu e seguiu caminho.
Nunca lhe viu o rosto, mas sentiu o peso do cadeado na sua motivação.
Seguiu em sentido contrário pela estrada empedrada, sujeito aos tropeções devido à humidade daquela tarde de outono.

Rosa Alentejana Felisbela
16/11/2018
(imagem da net)

Estrada


Na sombra do escombro
se esconde um olhar
- preso na convenção-
relicário da sociedade

e o corpo ausente
num sopro de sal
veste de negro o que sente
num prazer infernal

sabendo que é gente
- quem sabe o “santo Graal”?-

inspira silêncios
nos ruídos da cidade

escreve o coração
nos muros da saudade

mais nada a prende
na gota ou na enxurrada
-cinzento poente-
em estrada inacabada…

Rosa Alentejana Felisbela
16/11/2018
(imagem da net)

domingo, 11 de novembro de 2018

O avental da minha avó Ana


A minha avó Ana tinha um avental de xadrez. Toda ela emanava amor. Tinha braços de baloiço de sono, pele macia e enrugada de tanto transbordar de ternura. Os seus olhos meigos aconchegavam a nossa chegada, como quem guarda tesouros bem fundo no coração. Da sua boca brotavam beijos repenicados de amor e palavras furtadas à saudade, mesmo que a tivéssemos visitado na véspera. E eu era o mais novo dos seus cuidados preferidos.
A minha avó Ana recebia-nos à entrada do monte com o avental a limpar-lhe as lágrimas por nos ver chegar. O sorriso desmanchava-se até aos olhos. Recordo-me do seu abraço e do cheiro do avental. Podia sentir o aroma à capoeira, de onde tinha trazido os ovos para o bolo que estivera no forno, junto do pão que amassara pela madrugada, invadindo a cozinha com o seu perfume.
A minha avó Ana tinha sempre remédio para tudo. Limpava as nossas feridas com o avental de xadrez, sempre que caíamos do baloiço feito de corda com um pneu de borracha pendurado na árvore das traseiras. Limpava-nos as palavras gravosas dos desentendimentos e aquietava as nossas discussões. Conduzia-nos para as cadeiras da cozinha, sentava-nos à mesa da concórdia e com uma colher de água-mel e um pedaço de pão mole amenizava os nossos olhares ressentidos. Não havia lugar para melindres, todos esquecíamos rapidamente as razões dos arrufos.
A minha avó Ana tinha um avental de xadrez que enrolava em torno dos braços frios que o inverno trazia. Quando a neve caía no meio do quintal, o corpo roliço da minha avó deslocava-se até à montanha, de machado na mão, e cortava ramos e acarretava-os no avental. Acendia a lareira e o aroma da caruma anunciava a proximidade do Natal. E eu sabia que o tempo do chocolate quente não tardava a chegar. Ouço ainda o crepitar da lenha e vejo o calor da lareira nas suas faces rosadas, e ela a segurar nas panelas com o avental, para não se queimar.
A minha avó Ana tinha um avental de xadrez que protegia os seus vestidos negros do luto do avô e limpava-lhe o suor de tantas canseiras. Era dela o trabalho pastorear as ovelhas, de as ordenhar e fazer os queijos frescos de que eu tanto gostava. Nas férias éramos nós a ajudar a avó nesse trabalho. Como recompensa, era nosso o labor de comer o pão quentinho com o doce de tomate ou a marmelada feita por ela, trazendo os frutos do pomar no seu avental de xadrez.
A minha avó Ana tinha um avental de xadrez que lhe enchia o colo de contos e canções de embalar nas noites quentes de verão, ao abrigo das estrelas cadentes. Os desejos percorriam os céus ainda virgens de maldade, e anunciavam um tempo desconhecido. Um tempo em que a minha avó Ana não se encontra presente. Um tempo em que os valores familiares vão rareando.
Mas eu sei que a minha avó Ana era real, bem como os seus ensinamentos. Hoje recordo-a, mas não sei o que foi feito do seu avental, e nunca mais encontrei à venda nenhum que tivesse a mesma qualidade ou o mesmo valor…Talvez porque os sentimentos e os valores não se comprem.
Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

quinta-feira, 8 de novembro de 2018

Só porque...

Só porque estou a ler um livro que considero interessante chamado “Os vícios dos escritores” de André Canhoto Costa:

Estou a pensar nas pessoas que escrevem. Não me peçam para distinguir as “cultas” das “incultas”, porque não o sei fazer por uma razão muito simples: o que sei eu das leituras feitas pelas pessoas ou do seu grau de sapiência da vida? Nada. Estão certos de que quem foi “condecorado” com um grau académico é mais culto que um mecânico ou uma cabeleireira? Não o podem afirmar. Quem me garante que a sensibilidade e arte moram neste e não naquele? Há muito que desisti de participar em antologias, coletâneas e afins. Também desisti dos concursos que têm como prémio a edição de um livro. A verdade é que nunca ganhei nenhum, nem sequer uma menção honrosa. Na verdade, também não sou apresentadora de televisão, nem sou famosa, não fiz nenhuma barbaridade a ninguém, nem sequer pertenço à esfera política. Sou uma mera cidadã que vive do seu trabalho como milhares de outros. O que não faz de mim alguém especial. Não me sinto inferiorizada, apenas triste por não ter um antepassado rico que me comprasse o título…Uma coisa é certa, eu não copio os escritores antigos (nem atuais), nem escrevo o que as pessoas querem para obter mais “gostos” ou “adoro”. Tenho é um grave problema: de vez em quando tenho “coisas” para dizer!

Rosa Alentejana Felisbela
08/11/2018

Sobra

Sobra a chuva chorando
sobra o vento uivando a tristeza
sobra o frio acobertando
a sobra que sou por natureza...

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Vela


Vela que cruzas o vento
presa ao mastro
de madeira antiga

Vives da brancura do lastro
soprada pelo tormento
e tantas vezes perdida

Toma o caminho da sorte
manobra as cordas
rumo ao porto de abrigo

Abraça-te ao farol do norte
e aponta a proa
às amarras da vida…

Rosa Alentejana Felisbela
05/11/2018
(imagem da net)

sábado, 3 de novembro de 2018

Cogitando


Sou a raiz da esperança
Sou o ramo de alento
Que dança

Sou o vento
Que passa e rumoreja

Sou a folha
Que flutua e peleja

Sou caminho
Que sigo sem escolha

Sou sorriso brando
de menino

Sou a bolha
de sabão soprada
no meio de um milhão

Sou chão…e estrada
Aprendiz da vida sitiada

Rosa Alentejana Felisbela
03/11/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Tu consegues


Diz-me, quanto do teu tempo ainda sobe a calçada sem ajuda da bengala da sabedoria…Foram tantos os anos abraçados ao campo, servindo horas e senhores, desde o nascer ao sol-pôr…Hoje sabe-te a boca ao amargo bolor do paliativo e o sono come-te as entranhas. Não há senão o bulício da dor e o cheiro fétido da morte a pairar sobre a noite. Mas a esperança espalha-se entre as almofadas aconchegadas a dois. Essas que o destino juntou desde a infância. E a luz da constelação do amor ilumina o quarto crescente do sorriso. Ainda consegues caminhar!

Rosa Alentejana Felisbela
31/10/2018
(imagem da net)

sábado, 20 de outubro de 2018

O mistério que invento


Vacilam hesitantes
as gotas
uma a uma

prendem-se por instantes
nas pétalas
na caruma…

espelham brilhos profecias
lábios sedentos
poemas

luxúria quebranto magia
saudades e alegrias
apenas…

caminho aberto de mundo
passo polido de vento

suspiro de nuvem profundo
no céu encoberto que invento

Rosa Alentejana Felisbela
20/10/2018
(imagem da net)

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Sozinha


Fecho os olhos e fico quieta. Não quero ouvir nada. Só o som da rua que passa pela janela da minha casa. Sim, tenho uma casa que me abriga das intempéries. Mas a vida insiste em colocar-me à prova no gume da faca que corta afiada. Os cortes perversos afluem-me ao cérebro. O coração bate descompassado. Estou tão só, como o sobreiro manso no meio do campo cultivado. Tantas sementes à minha volta e poucas germinam. Devo às raízes tudo o que sou, mas serei árvore suficiente para me manter em pé? Inspiro o ar rarefeito da esperança. Abro as janelas da alma. Deixo arder o sobreiro para me dar algum calor. Sinto o perfume a queimado e a saudade percorre-me as veias. Acredito no que vejo e sinto. Vivo. As pálpebras teimam em abrir-se para a rua que passa apressada pela janela. E eu pego no telemóvel para te ligar. Ninguém consegue suportar as amarguras da vida sozinha.

Rosa Alentejana Felisbela
19/10/2018
(imagem da net)

quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Indiferente


Move-se o pensamento
lentamente
pingo a pingo

Como lágrima
estridente
caindo no chão
do caminho

Morde-se a saudade
nos lábios
secos de sol e de estrada
vazia de gente

Doba-se
o fio da meada
da vida que segue
indiferente

Rosa Alentejana Felisbela
18/10/2018
(imagem da net)

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Hoje num lugar público:


Um senhor estava a almoçar com a esposa e a cunhada, quando é abordado por outro senhor. Ao que nos pareceu, não se viam há anos. Este último, pelo modo de falar, era uma pessoa instruída e bem-disposta. Depois dos cumprimentos respeitosos, o senhor bem-disposto pede desculpas e diz: “Com todo o respeito, não querendo intrometer-me, essa senhora é sua cunhada, não é? N B – nota bem: lembro-me dela pequenina e de lhe terem tirado uma coisa que ela não tinha.” Os três entreolharam-se um pouco desconfortáveis e não responderam. Ele voltou a dizer: “N B – nota bem: lembro-me dela pequenina e de lhe terem tirado uma coisa que ela não tinha, sabem o que era?” Eles negaram com a cabeça. E ele responde: “Uma fotografia!”
E foi a gargalhada geral de quem estava, mesmo sem querer, a ouvir, porque o senhor falava muito alto.

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

sábado, 13 de outubro de 2018

Contrito?


Quebramos folhas e pequenos ramos
Com passos de outono perdido
Sorrimos umas vezes choramos
Rendemo-nos ou soltamos o grito
Da chuva do vento
O abandono
A tempestade
De um poema
Que nunca foi escrito…

Rosa Alentejana Felisbela
13/10/2018
(imagem da net)

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Despedida


Se alguma vez a saudade
Tomar conta do teu dia
Vem ler os poemas sem idade
Que te escrevo com ousadia

Lê nos textos e entrelinhas
Saboreia cada sílaba no olhar
Vê como as folhas branquinhas
Revelam a tristeza do sonhar

Mostro-te a falta que fazes
Nos fios da luz intermitente
E como as linhas são capazes
De manter outro desejo ausente

Se não te conseguires encontrar
Nos meus versos e rimas
Talvez não mereças alcançar
A dedicação das lágrimas

Abre o livro das horas belas
Toca os letras a negrito
Lembra os altares das capelas
Venerando o amor mais bonito

E se não vires as memórias
Que me encantaram o coração
Esquece de vez as histórias
Vividas numa outra dimensão

O manto dos sentimentos
Fica-me bem, sem dúvida
Abro a porta ao esquecimento
Deixo entrar a despedida

Rosa Alentejana Felisbela
12/10/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

O que procuramos

Queria conhecer a força que tem a roda da vida, que nos move e torna os dias longos ou curtos. Queria a chave, o ínfimo átomo que transforma a mente em pensamento positivo perante uma adversidade. Queria a sequência decrescente para a felicidade. Todos queríamos. Mas, o ciclo é composto por erros e acertos, fases como as que tem a lua. Somos simples seres complexos, expostos ao sol. Cabe a cada um estabelecer o contacto adequado a cada estrela, a cada lua. Não devemos, nunca, esquecer que à nossa volta existem outros com a mesma combinação de moléculas. Partilhar alegrias, tristezas, sucessos e insucessos faz parte da condição humana. Todos nós, alguma vez, iremos precisar de outros, por essa razão devemos trata-los com o máximo respeito, consideração e amor. Olhar os outros nos olhos, chama-los pelo nome, agradecer em atitudes, deixar-lhes um sorriso no rosto, e sobretudo, manter a fé no futuro, são premissas para vivermos mais felizes. Afinal, é essa a nossa meta...

Rosa Alentejana Felisbela
03/10/2018
(imagem da net)

sábado, 29 de setembro de 2018

Caminho de rosas


Vem, meu amor
pelo caminho de pedras
da tua margem

salva-me do rio de quimeras
desavindas dos teus braços

-traz-me abraços-

e cartas escritas de aragem
doce sem esperas sem fim

que eu tenho um caminho
de rosas perfumadas
para ti e para mim…

depois declama-me o poema
da tua boca na minha

-fome insaciada-
festim…

Rosa Alentejana Felisbela
29/09/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Bem-vindo outono


Bem-vindo outono
que te espraias
pelos relâmpagos
oblíquos
e trovões
traz a paz no vento
e a alegria
que escondeste
no verão...

Rosa Alentejana Felisbela

domingo, 23 de setembro de 2018

Perdido e encontrado


A serra sobe sobre a terra moribunda de noite
Mas o crepúsculo alastra alegre o seu dourado
O fio de luz percorre a linha do horizonte
Trazendo o perfume a feno a palha do prado
E a ampulheta do tempo que cai em grãos inseguros
Troca o rumo da distância pelo abraço de trigo puro
Ao peito plano nasce um assomo de desejo partilhado
Nos dias negros carrega a trouxa das tormentas, mas
Toma a sorte em tragos largos e extasiados
O perfil traçado quase no escuro é de amor perdido e encontrado!

Rosa Alentejana Felisbela
23/09/2018
(imagem da net)

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

morte de uma alma

Paula Viegas escreveu no dia
14 de Setembro às 12:16
Como é que se mata uma pessoa? Abraça-a como se tivesses nascido com a medida dela e nunca mais lhe toques.
Confidencia-lhe coisas tuas, dizendo-lhe como é fácil falar com ela e nunca mais a procures. Para nada. Olha-a nos olhos e entra-lhe pela alma adentro e depois deixa-a sozinha a tentar entender como saíste de lá. E o que aconteceu. Cruza-te com ela e finge que não a viste. Fá-la acreditar que nada foi de verdade. É assim que se mata uma pessoa...

Acrescento eu:
Há mortes que não se vivem fisicamente, mas na alma. Dentro do peito existe um sentimento que no lugar do sol, planta nuvens escuras, carregadas de chuva. Os dias tornam-se pesados demais para carregar às costas da solidão, como trouxa que leva o amor, a ternura, a fantasia, e tudo o que adoça a alma. Esta definha, torna-se lugar-comum e não acredita no perfume das flores, nem no sabor do mel, e muito menos na raça humana. O egoísmo brota da fonte e mergulha a pele num naufrágio constante. O ar rarefeito condensa-se nos sonhos. E a paz que se come na metade da laranja, azeda na casca. O rosto crispado, os olhos toldados, consomem o sorriso e não existe forma de despertar da dor. A não ser que se abra a janela e um novo dia rasgue os olhos da aurora.
Rosa Alentejana Felisbela
21/09/2018

terça-feira, 11 de setembro de 2018

Nublado

Por vezes só mesmo um abraço separa a solidão do corpo nublado.

Rosa Alentejana Felisbela

setembro

Há dias em que o brilho do sol nos desperta para a vida, e outros em que nos ofusca e desencadeia as lágrimas. A resiliência baseia-se na capacidade de recolher os raios em proveito da pele, sem a descuidar. Que sejam dias de despertar para a vida, estes de setembro.

Rosa Alentejana Felisbela

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A arte do poema


Que sabor tem
a batalha dos nossos corpos
no campo aberto
- coração -

Que som saboroso
do cio do incendio
que não contemos

e as serpentes da boca
e os membros
de cansaço mortos

Que encanto de esgrima
de defesa e ataque
nos condena

a distância
quando em cinzas
cada corpo arde…

Mantemos a estação
no poema
e tudo o que escrevemos
no papel é arte

Rosa Alentejana Felisbela
10/09/2018

(imagem de theresa lillian)

domingo, 9 de setembro de 2018

Homenagem aos oleiros - Beringel

Ontem, dia 8 de setembro foi um dia especial. Os oleiros de Beringel, entre os quais o meu pai, foram homenageados pela Junta de Freguesia e pela Associação de desenvolvimento de Beringel - Badajan. Fica o registo do momento emocionante e de recordações saudosas bem como o texto que escrevi, e de onde foram retirados elementos para o texto patente na exposição. Muito obrigada <3 A olaria – José António dos Reis Baião (Petisco) São 9 horas da manhã de um dia qualquer, e José Baião (Petisco) levantou-se há pouco. Não por preguiça, mas porque do alto dos seus 79 anos, reformado há tanto tempo, tem direito de o fazer. Tempos houve em que se levantava tão cedo quanto o sol. A conversa começa pela lembrança da infância. Cerca dos 9 ou 10 anos abandonou a escola e começou a ver familiares a trabalhar o barro, a pedalar na roda dias seguidos e o desejo de experimentar tomou conta dele, até porque tinha que ajudar a ganhar dinheiro para a família, e começou a trabalhar no dito ofício. Recordou que cada roda custava à volta de 50 escudos. Primeiro trabalhava em rodas emprestadas e começou pelos “testos”, ou seja as tampas das panelas. Cada panela valia 3 tostões na altura. De salientar que a roda onde trabalhou tinha 2 rolamentos - coisa pouco vista na ocasião -, um espigão em aço e uma “rela” em pedra – que é uma pedra com um buraco no meio. Usava uma “linha de meia” para cortar os testos, uma “alpenatra” – que era um bocado de chapéu velho, usado para alisar a loiça - uma cana para medir e desenhar nos potes – dizia-se que era para “dar barriga à loiça”. Depois passou a fazer infusas pequeninas, que valiam 6 tostões cada uma. Se fizesse um cento ganhava 6 escudos. Lembrou a casa do tio João (Petisco), lugar onde passava dias e dias a ajudar, com o primo da mesma idade, até que começou a fazer as suas próprias “fornadas” – era uma grande quantidade de loiça que ia a cozer ao mesmo tempo. Utilizava “formas” feitas em barro para fazer a metade de baixo de um pote, e outras em madeira para fazer a metade de cima dos potes. Pagava 5 vinténs por “poia” (que era o aluguer para cozer as fornadas no forno do tio). Quando o preço subiu para 10 e 15 vinténs, resolveu construir um forno no próprio quintal. Contou que levava 12 a 15 dias para fazer uma fornada inteira (desde “galhetas”, “infusas” grandes e pequenas, vasos, potes e até salgadeiras). Cada fornada valia 120 a 150 escudos. Mas houve uma vez em que cobrou 1 conto e 800 por uma fornada mais avantajada. Recordou quando saía por volta das 4 da manhã de casa com os amigos “Miúdo”, “Russinho” e o mestre Cruz para irem buscar barro às terras, primeiro em carroças – cada uma custava 4 contos -, depois em “galérias” (tratores com atrelado). Às 10 da manhã, depois de terem o barro carregado, já estavam na horta do mestre Cruz, onde o José Baião fazia as sopas de toucinho ou comiam pão com linguiça. Foram tempos duros, mas a amizade entre todos os oleiros era fator fundamental que ajudava a ganhar algum dinheiro. Os tempos mudaram e teve que emigrar para França. Foi fazer temporadas de 6, 9 ou 13 meses nas podas das árvores de fruto. Mas a saudade da família fê-lo voltar ao barro em Portugal. Quando abandonou a roda, passou a comprar a loiça a outros e a vender pelos montes neste Alentejo profundo, incentivado pelo padrinho Martinho, de quem guarda um enorme carinho. Depois do pai, foi a pessoa que mais o ajudou na vida. Depois de mais uns anos decidiu reformar-se. Entretanto já são 11 e 30. Comove-se quando repara que nenhum deles “está cá” e que pode esquecer-se de alguma coisa importante. Por enquanto, continua na arte das memórias, já que a do barro, não a passou a nenhum outro familiar. Rosa Alentejana Felisbela

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

delicadeza

"Não há gesto mais bonito que a delicadeza da alma. Demonstrar o que se sente deve estar no topo dos gestos!" Rosa Alentejana Felisbela

Tranquilidade

"Na tranquilidade das ondas, um abismo de recordações" Rosa Alentejana Felisbela

Acordei

Quando partes retenho a cor dos teus olhos, o perfume da tua pele e o hálito da tua boca. Memorizo o som dos teus passos, e o som cristalino da tua gargalhada que invento, como se o ferro em brasa da saudade me tatuasse a memória. Sei que um arco-íris de alegria me levantará, todos os dias, da cama de gotículas de orvalho onde sempre me deito. Carrego os tons cinza da tua partida nas nuvens que me escurecem o olhar. O fardo desse mar magoado de angústia pesa-me sobre os ombros. O piar da gaivota muda de adeus quebra-se em miríades de estilhaços sobre a vidraça da minha janela. Escorrem lágrimas dos beirais dos telhados periclitantes de vidro baço, sob os quais me protejo do temporal. Todas as páginas brancas ficam suspensas no limbo da imaginação cruel, tão cruel! Mas um sopro do vento Norte transporta-me as folhas de um outono em tons de laranja, castanho e amarelo e eu abro as mãos e deixo-as voar. Novas cores florescerão no sacrifício das velhas árvores. Bani as falsas promessas do campo largo da minha visão. Na verdade, limitei-me à curta distância de olhos semicerrados acreditando na tua ausência definitiva. De repente, abro os olhos e vejo que adormeci. Reparo que estás de volta, no teu andar lento e manso, branco, de orelhas afitadas e olhar atento. Somos só nós dois, nesta ilusão de romance de amor. Vens devolver-me os afagos que sonhei. Hoje sorri. Acariciei-te. E sei do teu sorriso porque acordei.

05/09/2018
Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

domingo, 2 de setembro de 2018

Anuncio Gillette O Melhor Para o Homem Anos 80



Lembro-me de ser uma jovem, nos anos 80. Altura em que as hormonas despertavam para o sexo masculino. As palavras não enganavam, e o anúncio começava com “sentes-te bem, estás sempre bem, queres ganhar”. Toda a geração de 80 sabe a que me refiro: o anúncio da Gillette. Não é pela marca, mas pela forma como foi concebido o anúncio. Perfeito. Só apareciam homens bonitos, em profissões que faziam a diferença, desde os apostadores na bolsa até aos astronautas. Eram jovens atletas, casavam-se com mulheres lindíssimas e tinham filhos perfeitos, a quem ensinavam a fazer a barba com o mesmo creme de barbear, como se se tratasse de algo hereditário. Inclusive a letra da música, deve ter sido pensada ao milímetro, porque ainda hoje sou capaz de a reproduzir. Se a vida fosse assim perfeita não haveria homens inconstantes, mulheres de pensamentos duvidosos e gente infeliz. Não existiria a mentira, nem a falta de diálogo, e muito menos letras silenciosas e amores eternos enquanto duram. Perfeito foi o anúncio. O resto são desculpas para levar a vida numa fantasia de facebook. A vida acontece, mas olhos nos olhos!

Rosa Alentejana Felisbela
02/09/2018

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Foto de agosto


A foto aflorou
no assento do sofá
sem lembranças
anteriores

sem mágoas tolas
sem dores
como imagem
que já não há

como música
que se ouve
na velha telefonia
a recordação

de um certo dia
surgiu como clarão
num quarto
morno que reluzia

ela virada de borco
no lençol branco
ele por trás
de tronco torto

inclinado sobre ela
num carinho
de mãos indizíveis

ela vestida de suspiros
e gemidos
incontáveis

num corpo de prazer
quase morto

e a foto dobrada
no canto
e o pranto calado
na saudade do passado

a volúpia
nos olhos de ambos
nos seios
nas coxas

passando pela boca
e as palavras distantes
inaudíveis

quebradas voláteis
penetrantes
nas cores
de um verão quente
de agosto, quiçá inesquecível…

Rosa Alentejana Felisbela
27/08/2018
(imagem da net)

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Cheiros e aromas

Escutas o som da chaleira. Primeiro aquele sopro agudo espalhando o vapor pela casa, depois o cheiro do chá. A infusão de hibiscos, amoreira, camomila, eucalipto, rosas e tantas outras, enlevam-te os sentidos e murmuram-te frases lúbricas aos sentidos, tantas vezes perdidos.
Olhas através da janela para a serra, e sentes as folhas do pinheiro-manso, do sobreiro, do carvalho, orvalhando a estrada até àquele Monte onde a Lua se deitou pela manhã. Conheces a magia que a desnuda nos versos que cantas, embora do corpo entendas apenas a prata pronta para a noite de amor claro, milimétrico, concêntrico que te fascina.
Arqueias a sobrancelha sobre o aro do ardil ardente que os seus dedos exploram no escuro, e nasce-te o arquejo do peito que quase explode de desejo.
Vives no chalé, perto da chácara onde ela, selvagem, comemora a feitiçaria com a mãe-natura.
Acompanhas a miragem dos braços que te chamam num aroma incorpóreo.
Queres para ti as longas pernas e o poço profundo, o chafariz do prazer guardado no segredo da tua língua, num paladar obsceno.
Chamas os montículos argentinos que despontam mesmo antes do dia nascer, para que a tua boca seja o cálice do seu prazer, mas o grito sai mudo.
Levantas a mão para o triângulo aberto da tua perdição, mas ela vira as costas num gesto casto, extremoso…
Porém, a brisa afasta-te dela, e o cheiro escapa-se pelas frinchas das portas, das janelas, dos teus olhos.
Louco, és o poeta que agarra no fio brilhante da faca afiada e corres para o campo.
Com as mãos trémulas, arriscas uma última prova de amor: desenhas no tronco da árvore mais próxima o teu nome com o nome da Lua, dentro de um coração que o tempo jamais apagará.
Ela chora, pois o sangue de sua irmã foi derramado por amor!
O cheiro? Desponta todos os dias, quando abres a janela do coração e te deixas, por ela, levar ao altar da insensatez.

Rosa Alentejana Felisbela
23/08/2018
(tema sugerido pelo meu amigo Luís Bento)
(imagem da net)

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Pessoas perfeitas?


Hoje, especialmente hoje, pondero sobre as oportunidades que damos às pessoas de partilharem o nosso caminho. Por vezes, aproveitam o desespero da nossa solidão e colam-se como lapas até sermos necessárias. Precisam de nós para lhes elevarmos o ego. Depois perdem o interesse e deixam-nos entregues à realidade. Tudo isso, porque nós somos peritos em criar na nossa mente a pessoa que nos convém, deixando de ser um estranho, mas não deixando de ser a mesma pessoa. Por vezes, favorecemos o abuso da sua presença, como animais de companhia, e a simples ameaça da sua ausência, faz gerar um medo medonho. Acredito que deve haver um equilíbrio, mas a generosidade de uma das partes, acaba por desequilibrar o que deveria ser puro. Desta forma, creio que a solidão dá o balanço para a necessidade ou a escolha de alguém a ter por perto. Pensamos que escolhemos e temos o “livre-arbítrio”, mas involuntariamente aceitamos a lisonja, ficamos demasiado viciados nas palavras dessa pessoa. Tentamos avaliar os outros pela bravura dos seus atos, mas e os resultados que se conseguem? Alguém os vê ou são apenas palavras bonitas? E o seu passado? É escolhido e contado da forma que interessa, retirando tudo aquilo que pode macular a personalidade. Desde pequena que me ensinaram que deveria ser mulher, amante, mãe, amiga, amparo…Mas, e quem me ampara a mim se for necessário? As palavras? Ou os atos concretos? Por vezes, é melhor corrigir o presente e aprender com o passado, nunca esquecê-lo. A nódoa fica na roupa quando te dizem que gostam de ti hoje, mas amanhã desaparecem. A nódoa mantém-se quando passas por dificuldades e as pessoas afastam-se. Acreditar em alguém é para mim uma proeza dramática. Mas não desisto, apenas esqueço quando não me interessa. Se tu consegues divisar o bom, do mau, parabéns! És uma pessoa perfeita. Mas essas existem???

Rosa Alentejana Felisbela
20/08/2018
(imagem da net)

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Perdi-me no teu olhar

Tantos dias, tantas horas passadas naquela mesma sala, com o sol a entrar pela janela e uma réstia de esperança a persistir. No quadro negro havia sempre um smile feito a giz amarelo para lhe chamar a atenção. Mas a entrada acontecia sempre da mesma forma, ele na cadeira de rodas, apático, sem reagir aos estímulos sonoros, visuais, olfativos…Ela bem se esforçava por dizer alto e bom som “bom dia José, como estás?”, e dava-lhe um beijo no rosto. Mas a reação era sempre a mesma: um olhar perdido por tantos surtos de epilepsia, e nenhum movimento.
Todos os dias lhe colocava as mãos por baixo das axilas e levava-o a cumprimentar os colegas, um a um, carregando-lhe o peso do corpo e o peso da esperança que lhe era ferida aberta. Sentava-o ao lado dos colegas da turma, conversava com ele todo o tempo, adaptava as atividades daquele menino às suas limitações e capacidades.
Colocava-o em frente de um espelho e ensinava-lhe onde estava o cabelo, os olhos, o nariz, e aos poucos fazia-o sorrir das brincadeiras. Sentava-o numa almofada e pousava-lhe as mãos num alguidar com água, outras vezes com areia, faziam construções a quatro mãos. O sorriso crescia naquele rosto anteriormente apático.
Criou-lhe um “tapete de sensações” que ele adorava tocar, para sentir as diferentes texturas dos materiais. O sorriso era agora uma constante.
Um dia, ao entrar na cadeira de rodas pela sala, ela não estava no local habitual e ele procurou-a com o olhar. Tendo percebido essa situação chamou-o de outra direção “bom dia José, como estás?”. A reação foi surpreendente: ele procurou-a nessa direção e deitou-lhe um largo sorriso nos olhos lacrimejantes. Ela foi ter com ele e deu-lhe o beijo habitual.
Nesse dia, ela sentou-se ao seu lado, mas estava adoentada e pousou a cabeça sobre a mão. Ele olhou-a e com a sua mãozinha procurou chegar à mão dela com um ar preocupado…Toda a turma se entreolhou e duas lágrimas percorreram o rosto da professora…Um sorriso cresceu depois, estava feliz por ter reação do menino que parecia apático e disse-lhe “ perdi-me no teu olhar!”.

Rosa Alentejana Felisbela
16/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Mariana Loureiro)
(imagem da net)

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O invisível

Havia um mar sedento de brisas aos pés da areia. E ele roubava-lhe os beijos, não esperando a censura. Acariciava-lhe os seixos, lambia-lhe com ternura as vagas, penetrava-lhe as funduras de musgo.
Nos olhos verdes transparecia-lhe o coração, batendo desenfreado por delírios de guelras e escamas.
Mesmo ao canto do coral, dobrava-se a anémona da alegria, cuspindo espuma branca, sem vergonha, mas cheia de generosidade.
De algas se fizeram as importâncias. Das cadências se espalharam as harmonias. E nas turquesas, residiam os mundos líquidos das sapiências.
Dos cabelos de limos escorregaram filosofias de respeitos, mas sem comandante não podia haver navio. Esse era o corpo nu de histórias.
Por isso, afinaram-se as vozes das sereias, ergueram-se os tridentes dos tritões, e em silêncio abriu-se a boca do invisível.
Ele que era a lágrima da procura. Ele que era o domingo de sol acordado no sobressalto da guerra das ondas. Ele que encontrou a impossibilidade da distância do dia feriado…
Brincando entre as margens apertadas da imaginação, surgiu a tua imagem, como santa sagrada abençoando o seu altar de água. O manto branco cingindo as formas do corpo, a aura de brilho solar presa aos cabelos, o andar descalço sobre a fantasia…
E eu, teu eterno pescador de sonhos, atiro a rede para mais um dia de labor…e de amor.

Rosa Alentejana Felisbela
14/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Mariete Lisboa Guerra)
(imagem da net)

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Amor à distância

Era o dia de Nossa Senhora do Rosário. A festa da aldeia incluía sempre o som dos foguetes às 7 horas da manhã, a corrida das bicicletas às 9 horas em ponto e o almoço em família com os emigrantes que vinham propositadamente nessa altura. A procissão pelas 17 horas da tarde envolvia uma indumentária comprada especialmente para a ocasião, e as raparigas viviam o ano inteiro a sonhar com o baile dessa noite.
Ela vestira-se com o vestido verde, calçara sapatos pretos de tacão alto, fora à cabeleireira no dia anterior para vincar os caracóis negros que lhe emolduravam o rosto miúdo, mas bonito, maquilhara os olhos, os lábios e as faces e juntara-se às amigas para o baile. Todas tinham o sonho de encontrar um namorado nessa noite, pois seria abençoado pela Senhora do Rosário. Do alto dos seus 17 anos, achando que era já mulher feita, procurava abarcar todo o recinto com o olhar interesseiro e interessado por todos os jovens que aparentavam a mesma idade ou mais velhos.
Foi um acaso que a levou à quermesse e a encostar-se, sem querer, a um rapaz de blusão preto e calças de ganga, de cabelo penteado para trás e um palmo de cara bem jeitoso. Daí a iniciarem uma conversa que durou a noite inteira, uma dúzia de músicas dançadas perto demais para os bons costumes e um beijo roubado ao rosto, foram motivos para ficarem a conhecer-se e a amar-se para sempre.
Porém, quis o destino que se separassem pelo facto de ele ser emigrante em França e ela estar a estudar em Portugal. Ainda as cartas mal tinham chegado, já os telefonemas borbulhavam em casa da única amiga que tinha telefone. Foram anos de namoro, de amor à distância…
Queira o leitor imaginar como a história terminou.

Rosa Alentejana Felisbela
13/08/2018
(tema sugerido pelo meu amigo António Ferrolho)
(imagem da net)

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Crepe de chocolate

Estava cansada. Assim que colocou a chave na porta de entrada e a sentiu fechar-se atrás de si, atirou com os sapatos para o fundo do quarto, e as roupas que foi atirando, peça por peça, caiam para cima do tapete, da cama, da mesa-de-cabeceira…Não se importava. Sozinha em casa podia fazer o que lhe apetecesse sem dar satisfações a ninguém. Desligou o telemóvel. Ligou o computador, mas só para ouvir as músicas preferidas que descarregara ao longo do tempo.
Em frente do espelho, dançava agora com um copo de sumo de laranja natural na mão. Balançava as ancas, movimentava as pernas e os pés ao seu próprio ritmo, sem pensar na figura triste que podia estar a fazer. Encontrava-se no seu mundo, onde era dona e senhora das suas façanhas.
Quantas vezes tropeçara no tapete e caíra redonda no chão e rira a bandeiras despregadas? Quantas vezes comera gelado a ver TV e quando dera conta tinha a boca, as mãos e até o revestimento do sofá sujos e nem dera por isso, rindo sozinha do disparate? Quantas vezes colocara os óculos para ler mais focadas as letras dos documentos, dentro do frigorífico, andando louca pela casa à sua procura e quando fora buscar qualquer alimento, os vira e gargalhara até chorar?
Viver sozinha tinha destes privilégios e ousadias. Não sentia falta de ninguém para a completar, ela já era uma mulher completa. Tinha o seu emprego, pagava as suas contas, saía quando lhe apetecia, ficava quando queria ficar em casa. Não admitia intromissões na sua vida. Respeitava todos e era respeitada.
Quando as hormonas assim ditavam, lá arranjava uma companhia masculina, sempre na maior subtileza. Os namorados só davam trabalho, e ela queria sentir-se livre para ir ao ginásio, para ir ao cinema, para fazer viagens, para seguir dietas que regularmente transgredia. Tinha um grupo de amigas e amigos com quem saía e privava, mas gostava de estar só.
Naquele dia, o Banco estivera mais movimentado que o costume. Pessoas complicadas a entrar e a sair. Gente mal-humorada aos gritos. E ela, sempre educada, no seu fato de saia e casaco, o ar profissional e arranjado, de lábios bem torneados pelo batom e um sorriso para oferecer a cada um. Aguentara estoicamente a passagem das horas.
Por isso, naquele momento só seu foi até à cozinha e preparou um capricho: um crepe de chocolate.
Entretanto ouviu tocar à campainha da porta. Aborrecida foi vestir um roupão e espreitou pela vigia da porta: um rapaz lindíssimo, que nunca tinha visto, encontrava-se a olhar para a porta com um ar indecente. De sobrancelhas carregadas e um ar de interrogação abriu um pouco da porta e perguntou o que queria.
Com um ar sorridente, o vizinho do lado, que se mudara havia uma semana e percebera os hábitos dela respondeu:
- Ouvi a música, senti o cheiro a crepe de chocolate e vim descobrir se a vizinha me podia matar a gula ou me deixaria aqui com o desejo à porta…

Rosa Alentejana Felisbela
13/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Rute Engrácio)
(imagem da net)

domingo, 12 de agosto de 2018

O valor do beijo

Num monte ermo vivia a menina das tranças negras e pele de alabastro mais linda que os seus olhos já tinham visto. De vestidos confecionados pela mãe, modista de primeira ordem, os sapatos mandados fazer à medida no sapateiro da terra, as meias sempre puras como a cor que a cal tem na parede asseada do monte. Corria pelos campos todas as manhãs, colhia alecrim, rosmaninho e erva-doce, fazia um raminho e levava para casa, saltando alternadamente ora num pé, ora no outro, cantarolando.
Desconhecia o que enfeitava as divisões do monte, e quem vivia dentro da sombra fresca com a menina. Sabia somente que a via ir para a escola, de sacola às costas e a pressa nos sapatos, levantando a poeira no caminho de terra batida.
Espreitava-a por entre as árvores até chegar à escola, onde evitava falar-lhe ou olhar-lhe diretamente nos olhos para não despertar a fúria das meninas mais velhas, ou de algum rapaz mais travesso.
Gostava de a ver sentar-se no intervalo, numa pedra do recreio e ficar a brincar com pedrinhas, formando casinhas, poços e inventar bonecas e conversas, imaginando dar-lhes de comer e beber… Nunca levava lanche, nunca pedia nada a nenhuma amiga, nunca se importava de brincar sozinha.
Na sala de aula era das melhores alunas, ficava nas carteiras mesmo em frente da professora, sempre atenta a passar as lições para o caderno. Quando havia um concurso, ela ganhava com a melhor história e a melhor caligrafia. Cantava a tabuada do princípio ao fim e não errava nenhuma operação de somar, subtrair, multiplicar ou dividir…Conhecia as plantas e outros temas cujas ciências exigiam.
Tudo observavam esses olhos castanhos, com a curiosidade de criança de circo, a viver com os saltimbancos, de terra em terra, numa casa de lona. Os cabelos crescendo ao abandono dos ventos, a cor da pele a confundir-se com a da terra, e as roupas curtas demais para a idade que tinha.
Um dia, com a fome a martelar-lhe o estômago, resolveu perder a vergonha e bateu à porta do monte da menina. Ela veio abrir e olharam-se com a cumplicidade do reconhecimento. Disse-lhe “tenho fome…”. A menina embrenhou-se na escuridão e quando voltou trazia um copo de leite e um pedaço de pão com manteiga. Devorou-o com sofreguidão e bebeu de seguida o leite. Limpou a boca com as costas da mão e sem pensar deu-lhe um beijo voltando-lhe as costas a correr muito depressa nos seus pés descalços.
A menina ficou a ver aquela criança a correr, e percebeu que era uma rapariga da sua idade. Teve o impulso de a seguir, mas não o fez. Fechou a porta por dentro.
No dia seguinte procurou-a na escola, mas o circo já tinha partido para outra localidade. Nunca mais a viu, mas aquele beijo soube-lhe à amizade que nunca mais esqueceria.

Rosa Alentejana Felisbela
11/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Maria Aboim)
(imagem da net)

sábado, 11 de agosto de 2018

Por onde anda a Poesia?


Diz a sabedoria popular que “o vinho é poesia engarrafada”. Desde a escolha da cor da uva que devemos saber que algumas passam e outras ficam para sempre no nosso paladar.
Pensando bem, preciso de beber um copo de palavras tintas sempre que me apetece escrever um poema. Não sei se é do sabor açucarado, consigo rimas doces e palavras melosas, extraídas da cana mais pura de um dicionário exigente. Componho pirâmides, pedra a pedra, e no fim a cereja no topo do bolo, o clímax do ambiente emocional dilata-se nas retinas do leitor, como droga de arte suprema.
Porém, se o sabor é ácido, isso deve-se à levedura dos adjetivos, às bactérias de onomatopeias que coloriram as frases, e se embrenharam nos diferentes sentidos que cada palavra pode assumir. Dependendo do sujeito, a métrica torna-se interpolada, emparelhada, e as pernas envolvem-se como trepadeiras, deixando a embriaguez chegar ao cérebro, empiricamente falando.
Todavia, se eu beber um cálice de palavras brancas, o sabor amargo pode tomar conta das reticências e das exclamações, espalhar-se pela folha branca do papel e torna-lo pardo ao toque das teclas. Esse som assemelha-se ao rasgar das conjeturas do leitor e não haverá mais vontade para interpretar.
Existe ainda o sabor “umami” que é um sinónimo da perfeição no gosto das frases, fermenta-as ou envelhece-as em madeira e carrega-as de temperatura e humidade controladas. Como se a excitação se desse ao desfrute e os preliminares assumissem a importância que devem realmente ter numa cópula. Aí vem a censura acoplada…
A qualidade dos sabores advém do equilíbrio entre os sons, as rimas internas e a equação perfeita que sustenta a escrita do princípio ao fim, como vinho de sabor único, incomum, que não pode ser adulterado… Nem sempre se consegue, afinal há alguns “feitos a martelo”, causando as tais enxaquecas no dia seguinte. Esses nem deviam ter visto a luz porque incomodam mais do que dão prazer, como todos sabem...
No final, a rolha (de preferência de cortiça, que é mais resistente) deve ser colocada no segredo mais bem guardado. Este deve ser, ao mesmo tempo, explícito nas entrelinhas do poema. Sim, escrever dá imenso trabalho. O problema é não ter “sobre” o que escrever…

Rosa Alentejana Felisbela
10/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Maria Lúcia)
(imagem da net)

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Duas vidas um destino

O dia queimava as paredes de cal branca e o seu rosto vermelho destilava pequenas gotas de suor, enquanto se abanava com um leque comprado numa loja dos chineses. O vestido de cor rosa colava-se à pele morena, deixando os olhos verdes lacrimosos e os cabelos negros colados na nuca.
Tal como fazia todos os fins de semana, tomara as rédeas do carro a que chamava carinhosamente de “carocha”, mais por causa do tamanho e da cor, do que pela marca que em nada se assemelhava à real, e seguira estrada fora.
Buscava um sítio fresco onde tomar uma refeição leve, para depois se deslocar à praia fluvial perto das Minas do local escolhido. Pedira uma mesa dentro do restaurante, mas este encontrava-se lotado, tendo que ficar numa mesa exterior, exposta ao calor abrasador e ao vento infernal que fustigava, de quando em quando, as toalhas das mesas, o seu corpo magro e a sua sede.
Poucos segundos depois, chegou um tipo vulgar, não muito alto, de careca brilhante e um rosto ameno, desejando refrescar o seu sotaque do Norte numa bebida e local fresco. Obteve a mesma deceção: casa cheia, última mesa perto da senhora solitária.
Gonçalo, o empregado de mesa, convidou-os a ficarem lado a lado. Ambos se sentiram constrangidos, mas dadas as circunstâncias, não se opuseram, afinal, a fome, a pressa e a sede limitava-lhes as escolhas.
Para quebrar o gelo que rangia através da mesa, o senhor apresentou-se dizendo que se chamava Marcelo e que vinha negociar a compra de vinho para o seu estabelecimento comercial no Porto. Ela disse que se chamava Joana e que estava desempregada há uma semana, tendo sido vendedora numa loja de roupas em Beja.
Quando Gonçalo lhes trouxe a carta para fazerem o pedido, após um momento de ponderação, simultaneamente pediram grelhada mista com salada. Após um instante de perplexidade as gargalhadas fizeram-se ouvir. Continuaram a conhecer-se um pouco mais, ela um pouco mais recatada, ele um pouco mais entusiasta. Após a chegada do menu das sobremesas, ambos, mais uma vez, pediram sericaia.
Começavam a sentir um clima interessante entre ambos, como se o conhecimento existisse desde sempre. Os dois se afirmavam solteiros e tinham uma tarde inteira pela frente. O calor amenizou-se perante os seus olhares, mas os corpos continuavam a sentir a necessidade de um bom refresco. Pagaram a conta e saíram do restaurante.
Um a seguir ao outro seguiram o mesmo rumo na estrada. O destino iria levá-los a um local fresco…

(Desafio proposto pela minha amiga Ana Maria Santos)

Rosa Alentejana Felisbela
10/08/2018
(imagem da net)

O mistério da rosa


Foram as mãos do jardineiro que adubaram a terra argilosa. Recordo-me do corte diagonal na estaca, e da forma cuidadosa como a colocou na batata para criar raízes, enterrando-a depois, mantendo-a húmida. Foram tempos de nascimento, ou renascimento, como lhe queiramos chamar.
Curiosamente, há pessoas que não se importam com as suas raízes, mas eu preservava-as, porque sem elas não seria o que, mais tarde me viria a transformar. O jardineiro confidenciava-me, com razão, que tudo dependia da sorte, da meteorologia (o inverno deveria estar a acontecer), da terra, mas o cuidado era essencial.
Após a rega, cresceram as hastes e pequenas folhas. Evidentemente os espinhos faziam parte desse pequeno tronco, pois não há rosas sem eles. Penso que seja uma das formas de nos defendermos das tentações de sermos colhidas demasiado cedo, já que somos o símbolo dos apaixonados…
Aos poucos foram nascendo os ovários, os estames e as pétalas, perfumadas e coloridas. Mas, a minha cor era azul, que significa o verdadeiro amor eterno, raro, forte, que nunca se abala ou descolore, e isso tornava-me cobiçada. Dizia-me o jardineiro que em algumas culturas o azul significa mistério ou a busca/alcance do impossível. E seria impossível alguém maltratar-me, pois ele não deixaria.
Foi dessa forma que cresci e me tornei adulta, de folhas silenciosamente orvalhadas, de sentidos despertos à admiração dos caminhantes do jardim. O jardineiro guardava-me, mas o medo tomava conta de todas as horas do dia. Apenas de noite descansava os pensamentos ocultos.
Mas, num dia raro de nevoeiro intenso, foi com surpresa que dei por mim nas mãos imberbes de um rapaz ladino, de olhos travessos e nariz adunco. Nada pude fazer perante a sua perícia de mãos ágeis e do sorriso trocista. Nem os espinhos o impediram de me colher.
Percebi que ele nada entendia de rosas. Que a sua intenção não era senão plantar-me nas mãos de uma menina de bibe aos quadrados e de sardas nas maçãs do rosto.
Morri na minha tristeza no meio de um caderno quadriculado, perdendo o perfume nas páginas, secando as pétalas num amarelo desbotado… Um trunfo de amor sem importância que o lixo mais tarde acarretou.
Ainda se tivesse morrido no meio de um livro de poesia, com as palavras dançando no meio de um amor verdadeiro…

(Tema proposto pela minha amiga Wilma Gonçalves)
Rosa Alentejana Felisbela
09/08/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Acalento


Hei de florir nesse mar
tantas vezes
quantas as ondas
onde mergulhas

Hei de perfumar o luar
tantas vezes
quantas as pratas
que olhas

Hei de ser o mel e o sal
na pele dos dias
que te tocam
e deixam do tempo o sinal

Hei de ser a escrita terna
incrustada na memória
do poema - a chama eterna
da nossa história
sem final

Hei de ser-te a alegria
da água escorrente
a única e derradeira magia
de um tesouro presente
em poesia

Hei de cantar-te a melodia
em murmúrios
na minha voz de sereia
sabendo que o amor
ateia no teu paladar

Hei de dar-te o rio
o riso
das papoilas do trigo
onde conheces o paraíso
- o único – para te acalentar

Rosa Alentejana Felisbela
08/08/2018