terça-feira, 30 de abril de 2019

Acerca…


A cerca que me cerca
e aperta o destino

comprime o espírito
desalinha a luz

quando o sol
está a pino

e a sombra emborca
o corpo e o tronco

amarrado na cruz
e não há cheiro

não há terra nem árvore
ou erva que não seja

caduca porque machuca
a ferida que corre

nas águas tormentosas

meu remanso meu abrigo
meu fardo pesado

de lágrimas de fado
que morre

numa papoila solitária
que desconhece

o perfume da rosa

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
30/04/2019

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Liberdade


Um dia, num horizonte longínquo, dissecaram um cravo, e através dele, inventaram um novo dicionário para a palavra jardim. A partir daí, o horizonte ficou perfumado, possibilitando o nascimento de outras palavras em outros jardins. Sabes porquê? Porque a liberdade é um suspiro de quem bebe horizontes por trás da sombra, e não se deixa morrer pela cegueira do medo.
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
25/04/2019
(imagem da net)

sábado, 20 de abril de 2019


No canto encontro a fé
cruzando a sombra
no muro onde a luz
mora
e fora o suspiro
da saudade...
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)

sábado, 13 de abril de 2019

Amor para toda a vida


Não se aconselha a leitura deste texto a pessoas sensíveis, pois é baseado numa história verídica, mas de contornos ainda mais macabros...

A Lua ia alta e o cemitério encontrava-se imbuído de uma atmosfera mística. O nevoeiro derramava os seus fiapos sobre as lajes estáticas e silenciosas. As fotos nas campas pareciam sorrir aos seus passos, coniventes com a escuridão da sua decisão. Passava da meia-noite e somente o cheiro da terra revolvida e das flores já murchas pairavam no ar. Um arrepio chegou-lhe à nuca, causado pelo vento frio que lhe roçava a gola da camisa negra. A sua respiração ofegante pela ânsia da procura expelia uma espécie de fumo branco, único traço que o denunciava no meio de tanto negrume. Trazia nos olhos um mar de mágoas e nas mãos o vazio da ausência, bem como uma pá. Quando se aproximou do local, cravou as botas na terra ainda fresca e escavou. Escavou até encontrar a caixa que guardava o bem mais precioso da sua vida: a sua própria vida! Ela fora a sua companheira, a sua amante, a sua cúmplice, a sua amiga, a sua tudo! Quisera o destino que o tesouro do seu coração não fosse forte e tivesse sucumbido de repente, sem nada o fazer prever. Porém, esse amor da infância, que se prolongara por tantos anos de casados, não vivera o suficiente de tanta felicidade. Recordava-se como se de hoje se tratasse: os dois sob a sombra da laranjeira, de mãos unidas e olhos entrelaçados, prometeram cuidar um do outro mesmo depois da morte. Prometeram, com a anuência das águas da ribeira que, aquele que vivesse enterraria o outro por baixo daquela árvore da casa onde iriam viver. Dessa forma, poderiam, para sempre, cheirar o perfume da flor que os apaixonava, e onde tinham brincado e feito amor pela primeira vez. Por essa razão, ele tinha ido recuperar o corpo da sua amada. Quando conseguiu abrir a caixa, retirou com a delicadeza do seu amor aquele corpo silente, frio…O mar que trazia nos olhos transbordou pela alma, molhou o vestido e a camisa numa mistura inconsolável. O abraço quase tocava a eternidade. Levantou-a e foi arrastando a dor pelo chão, com a culpa na garganta, mordendo as palavras até gastar a incerteza do que fazia. Do cemitério até sua casa demorou apenas alguns minutos. Felizmente não havia ninguém nas redondezas, ou chamar-lhe-iam louco, profanador de cemitérios. Mas ele tinha um propósito digno, sério e verdadeiro: cumprir a sua promessa. Não lhe tinham dado ouvidos, ele quisera enterra-la no quintal da sua casa, mas por motivos sanitários impediram-no. Agora estava a repor a sua palavra. Chegado a casa, com todo o cuidado, levou-a para a casa de banho e tirou-lhe aquele vestido, lavou-lhe o corpo com água tépida, pedaço a pedaço, com toda a doçura que encontrara dentro da sua convicção. Enxugou-a com leves toques do seu toalhão preferido. De seguida, hidratou-lhe a pele com os óleos aromáticos que ela sempre usara. Perfumou-lhe os cabelos com o seu champô preferido, penteando-a como ela gostava. Depois vestiu-a com as roupas que lhe oferecera no aniversário. Colocou-lhe o batom que adorava e deu-lhe o último beijo apaixonado, chorando copiosamente, afirmando-lhe que a amaria para toda a vida. Envolveu-lhe o corpo no tecido de veludo carmim da colcha que ela comprara para a cama e foi deposita-lo na cova aberta antecipadamente. Rezando, atirou algumas pás de terra sobre ela. Por fim, entrou em casa, colocou a música das suas vidas a tocar e voltou a sair, indo sentar-se sob a laranjeira, perto da campa recordando-lhe alguns momentos de felicidade que viveram juntos. Era assim que pretendia continuar a viver…Aguardava que o dia chegasse. Quem sabe o que o sol traria na amanhã seguinte…A sua promessa estava cumprida. O seu desespero terminara.
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
13/04/2019
(imagem da net)

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Que a onda venha


Que a onda venha
Que o mar te traga
Que eu fico sem pena
Na areia sagrada
Que a onda venha
Que o mar te traga
Que eu aguardo a espuma
Envolta na vaga
Que a onda venha
Que o mar te traga
Que a saudade envenena
E a ausência me enfada
Que a onda venha
Que o mar te traga
Que eu sinto inveja
Do sabor do sal
Que a tua pele alveja
No escuro abissal
Que a onda venha
Que o mar te traga…
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)

As rosas que plantaste


As rosas que plantaste no quintal continuam a sua saga de cor e perfume, em arroubos de primavera ventosa e fria. Recordo-te sentado na cadeira que balançava com os teus pensamentos mais tenebrosos. Aquela cadeira onde descansavam os teus ombros fatigados, vestidos com o casaco de lã da cor da esperança que te fugia, por entre os dedos do tempo. E as tuas mãos, cada vez mais tristes, repousavam no teu colo de carinho e tanto amor. De boina sombreando os olhos, protegendo os parcos cabelos brancos, olhavas as rosas alaranjadas. Por certo pensavas na aventura de trazeres uma “poda” de França, dentro da mala de cartão que guardavas sobre o roupeiro, ganhando o pó das lembranças árduas. Tinhas um mar nos olhos, e as palavras trancadas na garganta. O cão aproximava-se e lambia-te as mãos pedindo atenção e tu fazias-lhe a vontade. Tu não querias partir. Não querias embarcar na viagem. Não querias deixar os que amavas. E comias o silêncio, mordias palavras e aceitavas abraços que ficaram na memória para sempre. Escutavas o som dos pássaros a cantarem as “modas” que amavas e cortavas o horizonte em pequenos bocados para levares guardados nos bolsos. E as rosas que plantaste, continuam a crescer no quintal, rumo ao céu onde te irão, certamente, encontrar.

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
10/04/2019

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Gotas


Caíam lentas a gotas que lavavam as ruas. Que abençoavam o pó transformado em barro. Que desaguavam nos regatos. Que iam ao encontro dos barrancos, formando pequenas poças. Também os meus olhos corriam como sombras, com a deslocação da água, através das vidraças da janela. Paravam na esquina da parede vestida de cal e de azul da casa da frente. Era a moradia do Carlos Aventureiro. Dizia-se que o Carlos tivera várias mulheres. Umas solteiras, meninas prendadas e de famílias ricas. Outras casadas, mas sonhadoras, que viram no Carlos uma forma de fugirem de casamentos insatisfeitos. Outras viúvas e carentes. O que unia estas mulheres era tão-somente a solidão. Aquela sensação de falta que rasga por dentro, que dilacera as entranhas em mil bocadinhos transformados em lágrimas que nunca secam. Aquela solidão que olha para as gavetas vazias. Que vê a ausência sentada na beira da cama. Que ensurdece os sons da fala. Que carrega a cegueira às costas como brinde- surpresa para o coração. Mas o Carlos era parecido com o pássaro exuberante, que não tinha ninho certo. Exibia a plumagem, emitia o chamamento mais ousado, a dança mais apelativa, mas nunca ficava. Ao passar um ou dois meses de namoro, batia asas e voava para outras paragens. Ficavam as damas a transbordar tristezas, e os familiares a jurar vingança. Quis o destino que se estabelecesse na minha terra, justamente na casa da frente. Nas suas idas e vindas enamorou-se da minha avó Clotilde, senhora da mesma idade, viúva há muitos anos. Todos os dias ele lhe deixava um raminho de camélias no parapeito da janela, mas a avó deitava-o para a rua, cheia de indignação por ele não respeitar a sua condição e as vestes negras que carregava. Uma vez, cruzou-se comigo na rua, retirou o chapéu respeitosamente, e deu-me o raminho para lhe entregar diretamente, juntamente com um rebuçado para me comprar a cumplicidade. Sorri, agradeci e entrei aos saltos em casa fazendo o que me pedira. A avó Clotilde zangou-se comigo e voltou a atirar o raminho pela janela. Fugiu o sorriso ao rosto do Carlos. Andava agora tristonho, passava na rua ensimesmado, carregando o peso das recusas da minha avó. Quis o destino que a minha avó partisse por culpa do coração destroçado pela ausência do meu avô. Foi quando o Carlos passou a colocar os seus raminhos de camélias sobre a campa da avó Clotilde. E eu fico sempre à espera que ele regresse a casa, com receio que algo lhe aconteça. Por fim, vi que acabou de entrar em casa, de casaco escuro escorrendo tristeza das mangas. O chapéu-de-chuva tombara à entrada da porta, deixando que as gotas se alojassem nos cabelos brancos do Carlos. A vida tinha sido uma procura de ninhos, e o ninho que ele aprendera a amar nunca o alimentou. O meu olhar cuida do Carlos, enquanto o meu coração transborda de compaixão pelo amor que ele nutre pela avó Clotilde…

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
01/04/2019
(imagem da net)