sábado, 12 de março de 2016

Conto: A ilha

Primeira história que eu conto:

Ilha
Já te encontrei ilha, sozinha e abandonada. Já te cresciam ervas e árvores e melancolias por todos os lados. Nem sequer erguias os olhos para o sol, porque as sombras dominavam todas as altitudes. E o perfume a bolor condensado sobre as raízes sufocava a respiração bafienta e entediada que te agarrava a pele, como inseto devorador de sangue enlouquecido pela fartura. Recordo-me da humidade constante nos teus olhos e na pena ingerida aos poucos, como soro paliativo da fome que te consumia. Sabia-te a exata localização, como se a longitude fosse insignificante perante o meu astrolábio. Vivias devagar, como quem sofre em “slow motion” cada bocado de angústia e se instala na beira do precipício de pés bem seguros pelas rochas, aguardando o impulso para o mergulho final. Embarquei na esperança do tempo e alcancei-te com mãos de luar pegando fogo ao mar de palha que nos separava…


Conquistador
Recordas-te da melodia que deu à costa pelas minhas mãos? Era aquele arrulhar das ondas, arrastando estrelas douradas, de um dourado brilhante, de um dourado apaixonado pelas tuas margens. Era aquele desmoronar na praia, o lamber da areia aos teus pés, sem, ainda, ter a ousadia de pensar em te tocar. E era eu, o teu conquistador valente, de espada em punho, qual pirata laborioso, ardiloso e enamorado, verbalizando cada vaga envergonhada em tom de tenor. A minha voz de tritão emudeceu-te, sendo conhecedor das profundezas do teu mar de anémonas coloridas, de cada pérola escondida no ventre de cada concha, de cada gruta solitária onde guardavas os teus tesouros. Lembras-te que não querias contar-me o seu posicionamento? Mas aos poucos, confiaste-me as arribas, as encostas, os desfiladeiros e dunas, bem como todas as plantas e perfumes que eram teus…tão teus! O meu olhar de menino do mar emoldurou o por do sol por trás da tua silhueta encantada e colocou a bandeira da conquista no monte mais alto, no monte mais acima, no monte do Olimpo! E foi quando brotaram novos cursos de lava do teu ventre para as minhas mãos…


Encantamento
Recebeste o jorrar de fogo das minhas mãos numa reciprocidade contagiante, como se um anel de vida nos unisse e nos comprometesse ao vício constante. Aparei os teus ramos de folhas raras, reguei as tuas raízes em carícias doces…tão doces, mas tão doces, que todo o mel de uma colmeia não seria suficiente para lhes fazer jus! Ajustei as tuas margens com o cuidado do agricultor, como se toda essa meticulosidade fosse a mais bela prova do meu amor! Afastei as sombras do teu chão e plantei veios de sol na tua pele plena de rubor e vida. Fiz-te viver a natureza de forma tão pura como a parede branca que a cal acalma perante o verão tórrido de uma paixão, e brotaram pequenos caules carregados da seiva dos poemas. Germinaram flores e nasceram frutos da cor carmim da tentação, enquanto a lava derramada das tuas veias, fertilizava as letras em canções de “ninar”. E embalei os teus sonhos com perfume a loureiro, eucalipto e pinheiro, numa fórmula mágica que jamais havias conhecido. Mas a perfeição tornou-se eco de mais uma breve conquista. O meu barco teria de partir rumo a novos horizontes e tu…


Tempestade
Tu continuarias ilha, se eu não tivesse desnudado as águas ao teu redor, se eu não tivesse abraçado ternamente esse prodigioso perfume às ervas de cheiro do teu chão, se eu não tivesse enfeitado os picos dos teus montes com coroas de flores e pássaros coloridos, e não irias achar que eu ficava. Porém, a tormenta aproximou-se do meu barco. Os relâmpagos rasgavam o céu de uma ponta à outra do horizonte, como aviso de que as nuvens iriam convergir e desmoronar-se sobre ti, empurradas pelos ventos fortes, tornando o dia cada vez mais escuro. O ribombar dos trovões, mais fortes que a própria mão de Thor, ensurdeceu-me de tal forma, que quis apenas salvar-me. A precipitação não tardava e eu…corri para os braços do meu barco. Já as ondas iam altas quando recolhi e me fiz ao mar das minhas ilusões, carregando todos os meus sonhos, todos os teus tesouros, deixando-te ali perdida. A tua nudez espelhou-se nas águas, como reflexo imprevisível. Se o verbo amar se sobrepusesse ao espelho quebrado da reciprocidade, as rochas não teriam ficado expostas…


Resiliência
E aqui ficaram as minhas margens a descoberto, após a monção dos teus abraços, após a tirania das vagas moldando os meus pensamentos de ilha frágil. Sim, resisti à subtileza cravada em cada investida do vento norte. Tornei-me una perante a ira da chuva inconveniente, regressei à impermeabilidade do solo e fiquei só com a água que me favorecia. Aprendi a resiliência do guerreiro perante os temporais que poderão advir num futuro próximo. O meu coração ficou reforçado, e em mim correm apenas rios calorosos e afluentes maravilhosos, rodeados de vaga-lumes quando a luz me falta nas noites escuras, e de beija-flores para mimar as flores junto aos seus leitos férteis e produtivos. Nascem agora verbos encorajadores das minhas entranhas como se a vida se esforçasse por realizar todos os meus sonhos escondidos, numa benesse embriagada de existência. Apenas o por do sol bebe do cálice profano na contraluz do meu horizonte e entorna as suas cores nos contornos da minha imagem…e brotam poemas dos meus olhos.

Fim

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

4 comentários:

  1. Perfeito conto, as partes entrelaçados fizeram sentido numa prosa poética envolvente. Agradeço sua partilha Rosa.

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    1. Fico muito feliz que tenha gostado e que o tenha dito!
      Beijinho Sam

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  2. Mais um encantamento de uma escrita ilha cheia de amor na arte de bem escrever.adoro a sua escrita minha menina.Beijos dos meus sinceros parabéns e que continue sempre assim!

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