terça-feira, 17 de janeiro de 2017

noturno de Chopin


Mágoas marginalizadas percorrem caminhos imaginários através das vidraças da janela, numa azáfama desorganizada por um vento a soprar sem parar. O gato enrosca-se junto à janela, aborrecido e sonolento, mas levanta a patinha para tentar agarrar alguma gota distraída. É ele o prisioneiro da solidão, o carente de afago, o pária do amor. Através da janela demarca o seu território de pensamentos, por vezes perversos, de versos libidinosos, mas sabe que não passarão de palavras sem pelo a roçar noutro pelo, sem o bafo quente de outro bafo no seu. Daquele lugar ele sonha o cio concretizado no olhar felino de outro olhar, mas sabe que a semântica será sempre metafórica, exacerbada, um pleonasmo sem par. Lambendo os pelos, consome as feridas abertas do amor-próprio convertido em autossatisfação, como se a língua rugosa pudesse lavar o seu melífluo coração, coberto de insígnias de saudade. Apenas Chopin insinua um trilho de lua, um noturno triste como banda sonora aos seus ais miados. Mas, ainda assim, mantém-se na sua clausura de tormentos onde os membros não podem dar asas à sua vontade, onde as articulações continuam presas virtualmente e as garras recolhidas para não melindrar ninguém. Por fim, o gato adormece e sonha. Sonha com a liberdade de bigodes ao vento, criando poemas de sol, palavras de chuva, comendo sentimentos sem morrer de fome, mordendo solfejos de amor e dormindo ao relento. Sonha…ainda.

Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

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