quinta-feira, 31 de maio de 2018

Retrato da memória

Tantas vezes olhara aquele retrato pregado na parede sobre o sofá da sala, que já nem ligava à manta de renda colorida, oferecida pela sogra, que sobrava de grande nos braços do mesmo. Detestava aquele pedaço de tempo jogado fora, que a esposa adorava. Para ele, não enfeitava, empobrecia a pouca graça que tinha aquele sofá, já por si, fora de moda. Contudo, as vontades da esposa eram sempre respeitadas. Olhava novamente o retrato. Eram tão novos, enjaulados naquela tela, por um casamento adolescente. Ela vestia o branco por todo o corpo e alma, de olhos cintilantes, roubando o azul ao mar de papoilas defronte da sua janela, trazia na boca os bagos da romã, e nas faces o rubor dos sonhos ainda virgens. Nas mãos níveas, havia um buquê de flor de laranjeira exalando o perfume a pureza. Aquelas mãos, que amassavam o pão, que temperavam a comida deliciosa de todos os dias, eram as mesmas que lhe percorriam o corpo à noite e lhe abençoavam os desejos de marido, sempre desejoso. Os cabelos loiros, apanhados em cachos no cimo da cabeça, seguravam o véu sobre um céu estrelado colado ao vestido de princesa. Estava tão linda, de pingentes de cor pérola nos brincos e no decote…Aquele decote que o inebriava e despertava a luxúria da boca. Aquele decote que alimentara os 3 filhos. Aquele decote era o seu orgulho de macho, que preferia que ela não exibisse em demasia, como fizera no dia do casamento, para não alimentar os olhares desprezíveis e invejosos dos seus amigos. Na sua opinião, uma mulher não deve exibir-se, para não provocar a lascívia nos homens. E uma mulher que é mãe, deve ficar em casa, medindo e pesando as crianças, dividindo o seu tempo entre as tarefas da casa e o seu marido, nunca a perder tempo com as amigas pelos cafés a lanchar e rir alto. Não fica bem a uma senhora. Voltando ao quadro, via agora os seus próprios cabelos, negros e encaracolados, o pescoço alto, a testa a evidenciar a futura careca, os olhos castanhos trancados a sete-chaves para não se ver o orgulho na mulher, o nariz adunco respirando quase todo o ar que a rodeava, a boca coberta da barba cerrada, sorrindo de lado, para disfarçar o embaraço da mão dela sobre o braço. Lembrava-se que quase tivera uma ereção (perdoem-me as mentes mais púdicas por esta memória), só pelo facto de ela lhe tocar no braço, durante a fotografia. Todo o seu corpo coberto de um frenesim azul-escuro, de fazenda talhada pelas mãos de sua mãe. Levava constantemente a mão à gravata apertada, que lhe abafava o grito pela noite, que nunca mais chegava. Ainda sentia as dores nos braços, devido aos tijolos e aos baldes de massa que carregara até à noite anterior, para construir a casa que se comprometera a terminar, para arranjar o dinheiro e pagar a boda. Um pedreiro não escolhe as horas, conta os dias e cada centavo para poder fazer-se à vida. Ela ainda tinha as costas doridas das costuras, mas não se queixara de ter que terminar os seus 30 pares de calças de homem, para conseguir o dinheiro para as cortinas da casa. Uma costureira queima as pestanas, mesmo junto ao candeeiro de petróleo nas noites escuras, mas não se rende até ao dia mais feliz da sua vida. Era notório que se amavam. E quando a noite chegou, ao tirarem aquela foto junto da árvore, com a lua grávida de esperança sobre o castelo ao longe, farrapos de nuvens rasgavam o vestido num desejo arrebatador. De repente, olha para o lado e ao vê-la entrar, de vestido novo e cabelo arranjado, os seus olhos saltitam como duas borboletas em torno dela. Ouve-a dizer: “Amor, o jantar está no micro-ondas e os miúdos já estão deitados. Fica bem. Lembras-te que hoje é dia de sair com as minhas amigas, certo? Adoro-te.” Beija-o na face e sai a correr. Ele sorri e pensa: “Como mudamos com o tempo!” Senta-se sobre a maldita manta e acende o televisor. A noite ainda agora começara…
Rosa Alentejana Felisbela
31/05/2018
(imagem da net)

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