quinta-feira, 24 de maio de 2018

O pardalito

Da vida conhecia o eclodir da casca, mais o bico que lhe saciava aquela dor aguda na zona do papo com insetos, e ainda as penas das asas que o aconchegavam num remanso quente e protetor. Tinha no corpo a penugem parca de quem nada sabe da vida. Nem sonha ainda, naquele imaginar de pássaro, com o voo da liberdade. A sua restringia-se ao ninho esférico, com entrada lateral, feito de pequenos ramos, penas, papel, algodão e outras fibras, entre as telhas da dona Arminda, e ao som contínuo de outros bicos e outros corpos igualmente quentes e igualmente insaciáveis a seu lado. Os dias passavam entre a claridade que as folhas da árvore, que ficava na frente, deixava entrar, e a escuridão, que as noites teciam ao seu redor. Até àquele dia, todos foram iguais. Naquele dia, ouviu um ronronar distante, que foi transformado numa enormidade de escuridão repentina. Justamente naquele dia, o dia ficou noite. E algo entornou liquidamente o ninho, impregnando a penugem, os pequenos ramos, as penas, o papel, o algodão e outras fibras, lançando pesadas bátegas sobre o seu corpo e sobre os outros corpos. Perdeu a noção do local aprazível. Rolou sobre as telhas, derramou-se pelo beiral, caiu inanimado, felizmente, sobre o tapete da entrada da casa da dona Arminda. Ela era octogenária. Vivia sozinha no seu ninho de solidão. Os filhos emigrados naquela procura de um futuro melhor, e ela só, naquele isolamento de quem perdeu o marido para a morte do coração. Vestida de negro, com um coração colorido, as mãos roliças de ternura, e o corpo pesado dos anos, fazia dos dias a renda da luz que via, através das folhas da árvore nascida na frente da sua janela. Comia as sopas que preparava com as horas ermas. Tinha medo das trovoadas e rezava: “Santa Barbara pequenina/ Se vestiu e calçou/ Seu caminho caminhou/ Jesus encontrou/ E Ele perguntou/ Barbara, onde vais?/ Senhor, vou para o céu,/ Abrandar a trovoada/ Que sobre nós anda armada/ Manda para o monte do rosmaninho,/ Onde não haja pão nem vinho/ Nem ramo, nem maneira/ Nem folhinha de Oliveira.” E quando a trovoada passou, dona Arminda abriu a porta e encontrou o pardalito, quase ser nascente, quase ocaso dormente. Pegou-lhe com as mãos de ternura, levou-o para a manta do aquecedor, ali o colocou com os carinhos da mãe que aconchega o filho do frio. Passaram minutos e horas, até ao momento em que o pardalito renasceu de penugem seca e papo esfomeado. Porém, dona Arminda não queria a sua prisão. Abriu a janela da sua solidão, e deu-lhe sementes de milho e de amor…Quem sabe quanto tempo iria ali ficar?

Rosa Alentejana Felisbela
24/05/2018
(baseado numa história quase verdadeira e a foto é da Ana Nunes Ribeiro)

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