quinta-feira, 17 de maio de 2018

A Ti Maria


A casa cheirava ao mofo do tempo. Os móveis, de madeira escura, erguiam-se como fantasmas pelas divisões. Como encomendas entregues pelo carteiro, que não haviam sido abertas, mas abandonadas pela casa. Eles refletiam vidas passadas, com molduras de madeira e rostos, a preto e branco, de homens com chapéu e laço, ou de mulheres de cabelos ondulados pelo calor do ferro. A poeira pousada na zona onde os naperons de renda branca, já sujos, feitos manualmente pela dona da mesma, não tapavam, dava ao local um ar de abandono saliente. As cortinas da cor do vinho tinto, pesadas e com o perfume a urina de gatos, encontravam-se apanhadas, na parte lateral, por uma corda dourada, e pompons que arrastavam pelo chão. Na cozinha, as “sopas de tomate” tornavam o ar menos pesado, mais acolhedor. Mas a quantidade de loiça de alumínio azul, usada há dias atrás, empilhada sobre os locais disponíveis, deixava o estômago embrulhado. A cama, com a coberta feita de quadrados de lã coloridos, era o lugar preferido dos doze gatos que frequentavam a casa da Ti Maria. Viúva desde que a conhecera, Bárbara, de 10 anos, era a única que lhe entrava pela porta e ficava horas a ouvir as suas histórias. Contava-lhe das saídas diárias, pelas madrugadas frias, de um rancho de mulheres (do qual ela fazia parte) rumo aos campos para ceifar, das modas para esquecer os dias difíceis da “amesturação”, dos dias quentes com os lenços a proteger a cabeça, das camisas de mangas compridas, e abotoadas até ao pescoço, das saias apanhadas ao centro das pernas com uma “pregadeira”, das botas subidas até meio da perna e das meias de renda grossa. Devido à posição para a ceifa, as dores na coluna ficaram como lembranças ferozes. Contava dos “balhos” no átrio de terra batida das casas e das cantigas à desgarrada, de improviso, com as “gaitas-de-beiços” a acompanhar. Dos namoros à janela e dos beijos roubados. Tudo isso encantava Bárbara, que gravava na memória cada um dos pormenores. Esses, e as novidades que vinham de França, pela mão das filhas da Ti Maria, em cartas que ela não sabia ler. Nas ditas cartas, lidas com entoação e rigor, havia notícias do neto da mesma idade de Bárbara, por quem esta nutria um amor platónico. A resposta não se fazia esperar, e era Bárbara quem a redigia, com a sua caligrafia impecável: “minha querida filha, como estás? Nós por cá vamos bem…” e quando as despedidas chegavam com “muitos beijinhos ao “José, ao João e ao Luís”, os dedos tomavam asas e viajavam justamente até ao rosto daquele amor adolescente. Bárbara viajava nas cartas, fechadas com a saliva dos lábios que nunca beijaram o Luís, e o seu coração palpitava dias e dias na esperança de uma resposta. Mas a Bárbara cresceu, fez-se mulher e nunca foi correspondida naquele amor. Mas ficou mais rica emocionalmente, por ter contribuído para a companhia da solitária Ti Maria, por ter guardado na memória todas aquelas histórias transformadas em património da história oral, e por ter aprendido que o amor unilateral não leva a casamentos. A Ti Maria encontrou algum alento em Bárbara, até ao final dos seus dias.

Rosa Alentejana Felisbela
18/05/2018
(imagem da net)

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