sábado, 26 de maio de 2018

O tempo da solidão

Sabemos que há tempo para tudo: para estar com a família, para estar com os amigos, para trabalhar, para ficar só…Mas, a solidão junta poeira sobre os móveis, rolos de cotão debaixo deles, calcário sobre as louças da casa de banho, negrume no fundo da sanita e nas juntas dos azulejos, e a loiça suja, acumulada, não encontra o caminho da máquina de lavar, bem como a roupa coberta de nódoas não sabe que outro lugar ocupar, senão a caixa a abarrotar, e o cheiro, nauseabundo, fica pairando nos cantos das divisões, onde aranhas tecem as suas teias. E a vida acontece lentamente, como nos filmes de Manoel de Oliveira, ou em slow motion, nos olhos tristes. O corpo obedece à batalha travada com o despertador, os pés descalços procuram, com esforço, a porta do duche, e as mãos percorrem a pele cheia de espuma, tentando lavar as pequenas lembranças de momentos felizes. A toalha perfumada é a única carícia que consola o corpo, enquanto o espelho reprova a silhueta, outrora bonita e jovem e sedutora. A roupa enrugada, pela falta de um ferro, parece diminuir as medidas, de cada vez que a veste. E de forma automática corrige a rota dos estudos dos filhos, acompanha a profissão da cara-metade, compra o medicamento para a idade avançada dos pais, vai dar comida ao gato do vizinho, que foi de férias para o Brasil, deixa os livros que queria ler sobre a mesa-de-cabeceira a ganharem pó. O trabalho refaz-se, cada vez com menos vontade. O objetivo é viver, é cumprir, é ajudar. Todavia, aguarda o poema, de costas viradas. Vê apenas a sua silhueta nas pétalas vermelhas do crepúsculo. E sabe, que nunca voltará. O tempo não volta atrás.

Rosa Alentejana Felisbela
26/05/2018

Sem comentários:

Enviar um comentário