domingo, 11 de novembro de 2018

O avental da minha avó Ana


A minha avó Ana tinha um avental de xadrez. Toda ela emanava amor. Tinha braços de baloiço de sono, pele macia e enrugada de tanto transbordar de ternura. Os seus olhos meigos aconchegavam a nossa chegada, como quem guarda tesouros bem fundo no coração. Da sua boca brotavam beijos repenicados de amor e palavras furtadas à saudade, mesmo que a tivéssemos visitado na véspera. E eu era o mais novo dos seus cuidados preferidos.
A minha avó Ana recebia-nos à entrada do monte com o avental a limpar-lhe as lágrimas por nos ver chegar. O sorriso desmanchava-se até aos olhos. Recordo-me do seu abraço e do cheiro do avental. Podia sentir o aroma à capoeira, de onde tinha trazido os ovos para o bolo que estivera no forno, junto do pão que amassara pela madrugada, invadindo a cozinha com o seu perfume.
A minha avó Ana tinha sempre remédio para tudo. Limpava as nossas feridas com o avental de xadrez, sempre que caíamos do baloiço feito de corda com um pneu de borracha pendurado na árvore das traseiras. Limpava-nos as palavras gravosas dos desentendimentos e aquietava as nossas discussões. Conduzia-nos para as cadeiras da cozinha, sentava-nos à mesa da concórdia e com uma colher de água-mel e um pedaço de pão mole amenizava os nossos olhares ressentidos. Não havia lugar para melindres, todos esquecíamos rapidamente as razões dos arrufos.
A minha avó Ana tinha um avental de xadrez que enrolava em torno dos braços frios que o inverno trazia. Quando a neve caía no meio do quintal, o corpo roliço da minha avó deslocava-se até à montanha, de machado na mão, e cortava ramos e acarretava-os no avental. Acendia a lareira e o aroma da caruma anunciava a proximidade do Natal. E eu sabia que o tempo do chocolate quente não tardava a chegar. Ouço ainda o crepitar da lenha e vejo o calor da lareira nas suas faces rosadas, e ela a segurar nas panelas com o avental, para não se queimar.
A minha avó Ana tinha um avental de xadrez que protegia os seus vestidos negros do luto do avô e limpava-lhe o suor de tantas canseiras. Era dela o trabalho pastorear as ovelhas, de as ordenhar e fazer os queijos frescos de que eu tanto gostava. Nas férias éramos nós a ajudar a avó nesse trabalho. Como recompensa, era nosso o labor de comer o pão quentinho com o doce de tomate ou a marmelada feita por ela, trazendo os frutos do pomar no seu avental de xadrez.
A minha avó Ana tinha um avental de xadrez que lhe enchia o colo de contos e canções de embalar nas noites quentes de verão, ao abrigo das estrelas cadentes. Os desejos percorriam os céus ainda virgens de maldade, e anunciavam um tempo desconhecido. Um tempo em que a minha avó Ana não se encontra presente. Um tempo em que os valores familiares vão rareando.
Mas eu sei que a minha avó Ana era real, bem como os seus ensinamentos. Hoje recordo-a, mas não sei o que foi feito do seu avental, e nunca mais encontrei à venda nenhum que tivesse a mesma qualidade ou o mesmo valor…Talvez porque os sentimentos e os valores não se comprem.
Rosa Alentejana Felisbela
(imagem da net)

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