terça-feira, 28 de abril de 2020

Um outro tempo


Numa cadeira de bunho, de costas carcomidas pelo tempo, ali estava ele, à sombra da figueira. No seu gesto de enfado, segurando a tristeza do rosto com a mão e apoiando o cotovelo no joelho. Tinha nos olhos encovados memórias tantas e finais e recomeços e alegrias e dores. As roupas envolviam o resto dos músculos que lhe sobravam, e uma dor ou outra que lhe deixara o trabalho. Ouviu ao longe um sopro de pássaro chilreando a sua tenra idade. Vinha ao seu encontro de avô. O coração encheu-se de asas e a boca de bebé abriu-se de par em par. A figueira vibrou todas as folhas, não se sabe se por causa da brisa ou da vontade. Os figos gemeram na delicadeza dos ramos, grávidos de sementes de esperança. À porta do quintal surgiu saltitando um pardalito, de calções e olhar traquina. Correu para os braços do avô gritando pelo seu colo e por um figo! Saindo da letargia dos pensamentos, o avô abriu os braços com uma força inesperada e abraçou-o tanto, tanto…O pardalito beijava-o com um piar de mimo e encanto. Conhecia bem aquelas mãos carregadas de caminhos. Levantou-se com a carga dos anos nas costas curvadas e deslocou-se à figueira. Apanhou o maior fruto e mais maduro. Com a pressa da sua lentidão deixou-o cair…Avô e neto ficaram olhando o chão coberto de mel e entranhas daquele figo. Os olhos do avô encheram-se de lágrimas, mas o neto pediu-lhe que o colocasse ao colo. Encheu as mãos de ternura e acariciou a barba por fazer, beijou-lhe as lágrimas e virou-se para a figueira. Com as suas mãos de passarinho audaz colheu outro figo. O avô sentou-se com o neto ao colo e com a meiguice que só o amor é capaz, partilharam outro mel, outra doçura. Sem palavras, sem esperas, sem prestarem atenção a outra coisa que não fosse aquele momento. Da porta de casa, a mãe e a avó choravam emocionadas sem serem notadas.

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
28/04/2020

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