segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Natal, doce Natal


Era o dia mais feliz do ano. O dia de Natal.
Começava com a “matança do porco”, que envolvia os homens da família, ainda a madrugada se espreguiçava. Altura em que eu acordava com os gritos do pobre animal, que me revolvia de penas. Eu chegava mesmo a deitar uma lágrima que a minha mãe se apressava a calar com um “não penses assim, senão ele demora mais tempo a morrer”… e eu, lá engolia o remorso sem querer sequer espreitar! A tristeza acabava por me passar à mesa, quando o “sarrabulho” e a “cachola” frita acalmavam o meu estômago de criança, acutilado pela fome e pelo cheiro que emanava pela casa.
Era sobre a lareira da avó que se dependuravam as “linguiças” e os “chouriços” a pingar para as brasas, e onde as panelas fervilhavam cozinhando a cabidela e aquecendo a água para lavar as loiças em alguidares de barro.
Nessa altura, já a mãe tinha amassado a massa das filhós com todo o preceito e perseverança, esticando a mesma com um rolo e recortando geometricamente retângulos que pareciam ter dois olhinhos no centro, colocado sobre um lençol imaculado de branco à espera que alguém as levasse para a frigideira de alumínio azul, onde deveriam ficar louras e estaladiças – como eu gostava – ou grossas e macias – como gostava o pai. Quando chegavam ao alguidar de barro para serem agraciadas pelos pequenos cristais de açúcar branco, já as costas lhe doíam tanto que mal conseguia levantar os braços, mas estava feliz com o sorriso da família que aguardava, impaciente por poder provar…
O tempo passava lentamente, sem horas para nada, e não se prestava muita atenção aos mais novos. Basicamente podíamos fazer o que nos apetecesse, salvo quando nos sentavam para comer: colocavam na nossa frente os pratos, novamente azuis de alumínio brilhantes e nas mãos os garfos de metal de dentes longos e tortos, de tanto serem usados. Molhávamos o pão molinho, cozinhado no forno a lenha na véspera, naquela confusão de sabores e era um deleite…
Depois voltavam as brincadeiras. Os “escondarelos” eram os preferidos, e de quando em quando, havia uma corrida entre as mulheres sentadas perto da lareira, o que podia fazer tropeçar num pau do fogo e fazer saltar fagulhas para as saias pretas das avós…isso, dava direito a uma boa palmada, que nunca fez mal a ninguém, seguida da gargalhada geral.
A noite chegava coberta de neblina, mas só lá fora fazia frio. O calor da harmonia reinava nos corações e nada faria mudar esse ambiente. Nem os presentes que se repetiam, sobretudo as meias, as cuecas e os chocolates “Regina”! Também o chocolate quente, feito na “escolatêra” da avó, marcava pontos no perfume que se propagava no ar!
Lembro-me das vozes dos primos, emigrantes vindos de França e dos Estados Unidos da América, assumindo o protagonismo, por contarem histórias de sofrimentos e de vitórias, tudo para “ganharem o sustento” e “terem uma vida melhor”. Nada que as férias na terra natal não apagasse, não desse forças para voltarem e fazerem mais e melhor.
Recordo ainda as “modas” iniciadas pelo pai, o “alto” da mãe, e acompanhadas por todos os outros, e da voz desafinada da prima (a única que não sabia nada de música, mas conhecia as letras todas e adorava cantar) que levava toda a gente para o tom errado, levando à gargalhada até às lágrimas, como era habitual.
Era o serão de jogar às cartas com vários baralhos, pois cada grupinho jogava o que sabia: as crianças jogavam ao “burro”, as mulheres à “bisca” e os homens à “sueca”, batendo com os nós dos dedos na mesa e fazendo os sinais que nós não entendíamos, mas também não nos interessava nada. Só ouvíamos os copos de vinho tinto a baterem na mesa e os brindes “à saúde e que para o ano estejamos todos cá novamente”! Tudo porque o vinho era caseiro, feito pelo pai, em pipas de barro com todo o cuidado, para chegar àquela noite “no ponto”!
À meia-noite era a debandada rumo à Igreja Matriz para a “missa do galo”. Geralmente fazia um frio tal, que se entranhava na lã dos gorros e feria as orelhas, e os olhos lacrimejavam, e enregelava a ponta do nariz e fazia o vapor sair apressado pela boca. Mas todos tinham que ir rezar a Nossa Senhora da Conceição para serem absolvidos dos pecados cometidos ao longo do ano e para os pais terem saúde e poderem cuidar dos filhos e dar-lhes tudo o que eles não tinham tido, e os filhos pediam para resolverem coisas de crianças. O beijinho ao “Menino Jesus” dava o ânimo final.
Quando voltávamos para casa, já o sono vencia os pequenos e éramos deitados todos juntos nas camas, para aquecermos mais depressa, o que era outro divertimento.
E os adultos voltavam aos jogos e cantorias até ser dia novamente. Era o dia mais feliz do ano.
Rosa Alentejana
27/12/2014
(imagem da net)

Sem comentários:

Enviar um comentário