segunda-feira, 1 de abril de 2019

Gotas


Caíam lentas a gotas que lavavam as ruas. Que abençoavam o pó transformado em barro. Que desaguavam nos regatos. Que iam ao encontro dos barrancos, formando pequenas poças. Também os meus olhos corriam como sombras, com a deslocação da água, através das vidraças da janela. Paravam na esquina da parede vestida de cal e de azul da casa da frente. Era a moradia do Carlos Aventureiro. Dizia-se que o Carlos tivera várias mulheres. Umas solteiras, meninas prendadas e de famílias ricas. Outras casadas, mas sonhadoras, que viram no Carlos uma forma de fugirem de casamentos insatisfeitos. Outras viúvas e carentes. O que unia estas mulheres era tão-somente a solidão. Aquela sensação de falta que rasga por dentro, que dilacera as entranhas em mil bocadinhos transformados em lágrimas que nunca secam. Aquela solidão que olha para as gavetas vazias. Que vê a ausência sentada na beira da cama. Que ensurdece os sons da fala. Que carrega a cegueira às costas como brinde- surpresa para o coração. Mas o Carlos era parecido com o pássaro exuberante, que não tinha ninho certo. Exibia a plumagem, emitia o chamamento mais ousado, a dança mais apelativa, mas nunca ficava. Ao passar um ou dois meses de namoro, batia asas e voava para outras paragens. Ficavam as damas a transbordar tristezas, e os familiares a jurar vingança. Quis o destino que se estabelecesse na minha terra, justamente na casa da frente. Nas suas idas e vindas enamorou-se da minha avó Clotilde, senhora da mesma idade, viúva há muitos anos. Todos os dias ele lhe deixava um raminho de camélias no parapeito da janela, mas a avó deitava-o para a rua, cheia de indignação por ele não respeitar a sua condição e as vestes negras que carregava. Uma vez, cruzou-se comigo na rua, retirou o chapéu respeitosamente, e deu-me o raminho para lhe entregar diretamente, juntamente com um rebuçado para me comprar a cumplicidade. Sorri, agradeci e entrei aos saltos em casa fazendo o que me pedira. A avó Clotilde zangou-se comigo e voltou a atirar o raminho pela janela. Fugiu o sorriso ao rosto do Carlos. Andava agora tristonho, passava na rua ensimesmado, carregando o peso das recusas da minha avó. Quis o destino que a minha avó partisse por culpa do coração destroçado pela ausência do meu avô. Foi quando o Carlos passou a colocar os seus raminhos de camélias sobre a campa da avó Clotilde. E eu fico sempre à espera que ele regresse a casa, com receio que algo lhe aconteça. Por fim, vi que acabou de entrar em casa, de casaco escuro escorrendo tristeza das mangas. O chapéu-de-chuva tombara à entrada da porta, deixando que as gotas se alojassem nos cabelos brancos do Carlos. A vida tinha sido uma procura de ninhos, e o ninho que ele aprendera a amar nunca o alimentou. O meu olhar cuida do Carlos, enquanto o meu coração transborda de compaixão pelo amor que ele nutre pela avó Clotilde…

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
01/04/2019
(imagem da net)

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