sábado, 13 de abril de 2019

Amor para toda a vida


Não se aconselha a leitura deste texto a pessoas sensíveis, pois é baseado numa história verídica, mas de contornos ainda mais macabros...

A Lua ia alta e o cemitério encontrava-se imbuído de uma atmosfera mística. O nevoeiro derramava os seus fiapos sobre as lajes estáticas e silenciosas. As fotos nas campas pareciam sorrir aos seus passos, coniventes com a escuridão da sua decisão. Passava da meia-noite e somente o cheiro da terra revolvida e das flores já murchas pairavam no ar. Um arrepio chegou-lhe à nuca, causado pelo vento frio que lhe roçava a gola da camisa negra. A sua respiração ofegante pela ânsia da procura expelia uma espécie de fumo branco, único traço que o denunciava no meio de tanto negrume. Trazia nos olhos um mar de mágoas e nas mãos o vazio da ausência, bem como uma pá. Quando se aproximou do local, cravou as botas na terra ainda fresca e escavou. Escavou até encontrar a caixa que guardava o bem mais precioso da sua vida: a sua própria vida! Ela fora a sua companheira, a sua amante, a sua cúmplice, a sua amiga, a sua tudo! Quisera o destino que o tesouro do seu coração não fosse forte e tivesse sucumbido de repente, sem nada o fazer prever. Porém, esse amor da infância, que se prolongara por tantos anos de casados, não vivera o suficiente de tanta felicidade. Recordava-se como se de hoje se tratasse: os dois sob a sombra da laranjeira, de mãos unidas e olhos entrelaçados, prometeram cuidar um do outro mesmo depois da morte. Prometeram, com a anuência das águas da ribeira que, aquele que vivesse enterraria o outro por baixo daquela árvore da casa onde iriam viver. Dessa forma, poderiam, para sempre, cheirar o perfume da flor que os apaixonava, e onde tinham brincado e feito amor pela primeira vez. Por essa razão, ele tinha ido recuperar o corpo da sua amada. Quando conseguiu abrir a caixa, retirou com a delicadeza do seu amor aquele corpo silente, frio…O mar que trazia nos olhos transbordou pela alma, molhou o vestido e a camisa numa mistura inconsolável. O abraço quase tocava a eternidade. Levantou-a e foi arrastando a dor pelo chão, com a culpa na garganta, mordendo as palavras até gastar a incerteza do que fazia. Do cemitério até sua casa demorou apenas alguns minutos. Felizmente não havia ninguém nas redondezas, ou chamar-lhe-iam louco, profanador de cemitérios. Mas ele tinha um propósito digno, sério e verdadeiro: cumprir a sua promessa. Não lhe tinham dado ouvidos, ele quisera enterra-la no quintal da sua casa, mas por motivos sanitários impediram-no. Agora estava a repor a sua palavra. Chegado a casa, com todo o cuidado, levou-a para a casa de banho e tirou-lhe aquele vestido, lavou-lhe o corpo com água tépida, pedaço a pedaço, com toda a doçura que encontrara dentro da sua convicção. Enxugou-a com leves toques do seu toalhão preferido. De seguida, hidratou-lhe a pele com os óleos aromáticos que ela sempre usara. Perfumou-lhe os cabelos com o seu champô preferido, penteando-a como ela gostava. Depois vestiu-a com as roupas que lhe oferecera no aniversário. Colocou-lhe o batom que adorava e deu-lhe o último beijo apaixonado, chorando copiosamente, afirmando-lhe que a amaria para toda a vida. Envolveu-lhe o corpo no tecido de veludo carmim da colcha que ela comprara para a cama e foi deposita-lo na cova aberta antecipadamente. Rezando, atirou algumas pás de terra sobre ela. Por fim, entrou em casa, colocou a música das suas vidas a tocar e voltou a sair, indo sentar-se sob a laranjeira, perto da campa recordando-lhe alguns momentos de felicidade que viveram juntos. Era assim que pretendia continuar a viver…Aguardava que o dia chegasse. Quem sabe o que o sol traria na amanhã seguinte…A sua promessa estava cumprida. O seu desespero terminara.
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
13/04/2019
(imagem da net)

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