quarta-feira, 29 de abril de 2020

Redemoinho


Havia na terra um precipício feito de rochas e mar. Um mar bravio, pleno de redemoinhos e rochas pontiagudas. Onde o vento uivava e as árvores escondiam o seu parecer, perante tantas mortes que tinham escolhido aquele lugar. Longe. Longe da povoação e da visão de transeuntes. Quem o escolhia sabia que não era só para chamar a atenção. Quem o escolhia sabia que era para manter a decisão. Naquela noite, os seus pés nus foram subindo e sofrendo as marcas dos sargaços ressequidos, das rochas como facas, das folhas agudas dos pinheiros. Parecia estar numa dormência entorpecida por todos os desgostos que aquele homem a fizera passar. Foi recordando as saídas noturnas com os amigos, os fins-de-semana para trabalho, para locais que ela desconhecia. E a sua compreensão, o seu carinho, a sua atenção, o seu amor sempre presente. Ela que se dedicara a ele e à casa. Ela que fora a sua companheira, mãe e amante. Ela que fora tudo, a pensar que também ele retribuía esse amor. Ela que telefonara para o hotel onde ele dissera estar hospedado para o avisar que esquecera o telemóvel em casa, e que fora atendida no quarto por outra mulher. Ela que nunca lhe dera um filho, sem saber porquê. Entendia agora o seu destino. Não lhe era permitido ter alegrias, somente tristezas. As lágrimas enevoavam-lhe o caminho, mas ela continuava a subida. Ela que pensara ser forte. Afinal tinha a fraqueza do despeito no seu coração. No entanto, quando chegou à beira do precipício, olhou em volta, sentiu a maresia no rosto e uma alegria encheu-lhe o peito. Estava viva. Era forte. Tinha um emprego e podia mudar. Mudar de vida, de local, de marido. Ela podia tudo! Ela era dona das suas decisões. E resolveu voltar para casa e fazer as malas. Quando saiu de casa ia mais leve. Entrou num compartimento do comboio e sentou-se aliviada. Nunca mais ele ou alguém saberia dela. Deixara o seu xaile na beira do precipício, sem querer. Sorriu a esse pensamento. A partir dali seria uma nova mulher.
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
28/04/2020

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