segunda-feira, 5 de abril de 2021

Confinamento

Contam-se as vírgulas impressas no texto sempre original. Nem muda uma palavra. Não existe um ponto final. Tantas reticências enganam as linhas. Comem-se verbos decorados, conhecidos. Saboreia-se a sopa de letras e lambem-se os lábios. Nada diferente. A saliva deixa de estar incandescente. Na língua, as papilas inchadas do veneno, eriçam-se mais uma vez. O corpo do poema exagera nas loucuras. O coração segura-se entre duas linhas. Cuidado com o vento, pode vir a trovoada e a revoada de ternura afasta-se brutalmente. O favor apaga-se na metáfora barata. Não são precisos rubis para entender que a mina florida foi fechada. Não há mais refeições na paragem dos autocarros. Maldito confinamento. Felisbela Baião (Rosa Alentejana)

quinta-feira, 1 de abril de 2021

Tranquilidade

No silêncio gritado aos ouvidos vive a mulher tranquila. Sobre o piano está um gato, saltitando de tecla em tecla, negra, branca… Com a sua língua áspera, ele lambe os bigodes, as patas, e ronrona, aninhando-se sobre a tampa lisa, limpa, negra. A mulher recorda o tule, o pliê, o cetim, as pontas dos sapatos, sobre o palco liso, limpo e negro. Vai ter com o gato, numa súbita saudade, em pontas, de pés ligeiramente afastados e virados para fora e segura-o, branco e suave, nos braços brancos e suaves. Sente a tranquilidade. Observa a chuva caindo no exterior da janela. É a trovoada. Segue as gotas que correm velozes para o regato. Sente o gato no colo. Cheira a terra molhada e o gato. Olha-o com a ternura e ele olha-a com a doçura. Escuta uma campainha de bicicleta lá fora e sorri. Coloca o gato no chão. Prepara um banho de espuma, velas perfumadas e incensos. Entra na banheira e só escuta a torneira a pingar, vê os versos através do olhar e lágrimas corridas. Vidas passadas, momentos felizes. Bebe um copo de vinho e sente a pele molhada, o cabelo escorrido e o seu corpo rendido, relaxado. A toalha de veludo envolve-lhe o corpo e ela desliza pelo quarto. O vidro embaciado lembra-a de nomes, beijos, abraços. Deixa entrar o sossego. Relembra a bailarina percorrendo o palco, o silencio, o escuro. Há um som de aplausos e risos flores cores pelo ar. É amada e feliz. A trovoada continua o seu troar, a chuva corre e não sente exaustão. Assusta-se com o turbilhão nuvens esmagadas, encontradas, misturadas. Mas as portas encontram-se fechadas e o silêncio é absoluto na paz do seu recanto. A música continua ali, no seu corpo e coração. O gato dorme. Felisbela Baião (desconheço a autoria do desenho)