quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Lentamente o sol…


Não existem palavras certas
Escritas na superfície da água
Nem no barro das estradas
Sobram sons e mágoas
O tempo passa lentamente
E ficam os braços
As pontes e os abraços
Abro os olhos e o mundo
Acredita que existiu um amor
Tão profundo…
Como o azul do mar
Guardado na fogueira do coração
No ninho das mãos
Soprado aos quatro ventos
Em apenas…um ou dois momentos
E resta o calor
E o sabor
A sol…

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
30/01/2020

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

“Me faltas”


Quantas vezes estivemos sentados neste lugar, de frente para o “nosso mar”, sabendo-o cheio de tormentas para acariciando-o com o olhar? Nunca me disseste em que pensavas, deixavas-me adivinhar…
Tu, talvez a creres ser sempre a última vez. Eu a acreditar que te renovaria e ali voltarias comigo sempre…Sonhava. Alguns sonhos são de realizar. Outros são de abandonar. Mas eu nunca te abandonei.
Quantas vezes te perguntei o nome de uma ave, que tipo de peixes viveriam naquela escuridão. Mas, tu contavas-me o que sabias, porém mergulhavas na tua própria escuridão.
Quantas vezes quiseste ir ver “a altura” que a água tinha? De dentro da tua memória, afirmavas com a certeza de um sábio, que a barragem já tinha estado mais cheia.
Cheia de lágrimas ficava o meu e o teu coração, cada vez mais unidos, cada vez mais separados.
Quantas vezes te pedi que cantasses comigo a canção da água, mas tu já tinhas perdido a sede e só ouvias o som amargo da foice a cortar, cada vez mais perto…
Quantas vezes te disse, agarrada ao teu braço e de mão enlaçada na tua, que ninguém nunca nos roubaria aqueles momentos. Aqueles em que os peixes saltavam e voltavam a mergulhar, aquele voo picado do pato bravo rasando as águas, ou o piar dos pardais a cantarem canções de despedida…
A despedida chegou, e foste embora, meu porto de abrigo…E foi tão turva como as águas que a barragem tem em dias sombrios.
Hoje, estava um desses dias, mas eu senti um raio de sol a evaporar as minhas lágrimas. Deixei-as no fundo da barragem. Porque era assim que me querias, com um sorriso no rosto. Amo-te tanto pai!

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
29/01/2020

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

Baile na aldeia

Era dia de baile na aldeia. Os homens já tinham trazido as verduras frescas para forrar o chão de terra batida. Os lampiões estavam acesos, derramando o seu cheiro característico pelo ar. As concertinas descansavam ainda sobre as cadeiras de bunho colocadas em volta. O pequeno degrau da parede acolhia as quartas de barro com água do poço fresca e cristalina, porque a sede não se faria esperar. Algumas garrafas, dispostas em fila, guardavam o precioso néctar que serviria de remédio para aclarar as vozes que cantariam à desgarrada.
Em casa de Mariana, no pequeno monte caiado, encontravam-se as duas primas, na tentativa de convencerem os pais a deixarem-nas ir ao baile. Porém, o “jogo habitual” ainda não parara, deixando as raparigas desesperadas:
- Mãe, podemos ir ao baile?
- Vão perguntar ao teu pai!
- Pai, podemos ir ao baile?
- Vão perguntar à tua mãe…
E assim ficavam, entre os dois, durante minutos que lhes pareciam horas, até um deles decidir dizer que sim, ordenando-lhes o regresso à meia-noite em ponto, sem aceitarem contestações.
As raparigas não queriam ouvir mais nada. Mal se continham de alegria. Foram vestir os seus melhores vestidos (sem decotes e com a barra por baixo do joelho, como faziam as moças sérias) e aprumaram as permanentes.
Quis a meteorologia que nesse dia tivesse trovejado e chovido imenso, o que significava que a escuridão mergulhara os campos sem lua ou estrelas que as guiassem.
Habituadas aos campos, conhecendo cada pedra e cada ladeira, foram caminhando pela lama da vereda mais curta para chegarem rapidamente à aldeia.
Tagarelando durante a caminhada, rindo deste e daquele que iriam ver no dito baile, desdenhando de um, demonstrando o agrado por outro, aconteceu o inesperado.
A prima de Mariana escorregou na lama e caiu sobre a água de um ribeirinho que se formara durante o temporal da tarde. As primas não se contiveram e riram a bom rir, no entanto a apreensão cresceu, quando se deram conta de que o vestido e os sapatos se encontravam ensopados. O que fazer no meio da escuridão?
Era tarde para voltarem ao monte e trocar de roupa. Mariana vislumbrou uma luz ao longe e dando o braço à prima encaminharam-se para o monte de uma vizinha.
A vizinha ao ver o estado da rapariga, naturalmente não negou ajuda. Com toalhas secaram a rapariga. Com o ferro de brasas secaram rapidamente o vestido e junto à lareira onde se fazia a comida secaram-se os sapatos.
Quando se sentiram prontas, voltaram à vereda e ao chegarem tinham uma verdadeira aventura a contar às amigas. Dançaram muito e cantaram, mas só até perto da meia-noite, porque a hora marcada pelo pai era para cumprir.
27/01/2020
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
(imagem da net)

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

A dança da vida


O som dos saxofones ouvia-se cada vez mais perto. Aquela voz doce e quente abraçava a alma e o coração. A entrada estava mal iluminada. Um casal abraçado vinha a sair a sorrir de felicidade. Quase iam de encontro a ela, mal conseguindo evitar o contacto. Ela sentiu o perfume deles, misturados, e um leve odor a suor emanava das suas roupas. Sentiu algum constrangimento pela proximidade e por permitir-se intuir tanto daquelas pessoas desconhecidas. O corredor era estreito, ela avançou devagar, deixando que a música a chamasse. Os seus olhos foram em direção à luz ténue da sala. Iluminada em locais precisos, permitia ver os casais a dançar na pista. As lantejoulas dos vestidos das mulheres, contornando-lhe os corpos sensuais eram fascinantes. Os homens estavam vestidos de negro e moviam-se com graciosidade quase feminina. No entanto, um olhar mais atento permitia-lhe ver a sua masculinidade de gestos mais robustos. Ela foi contornando a pista até encontrar mesas e cadeiras. Sentou-se observando a envolvência com toda a atenção. Mas ficou só por pouco tempo. Um homem ofereceu-lhe a mão propondo-lhe dançar uma rumba. Ela aceitou e retirou o casaco pesado que lhe ocultava o corpo esbelto. Ele levou-a para o centro da pista, largou-lhe a mão e afastou-se. Ao sinal que lhe deu, ela avançou para ele com toda a elegância e seguiu-lhe as indicações. Eram o par mais belo do salão. Não se conheciam, mas entendiam-se como se fossem um só. Os restantes pares afastavam-se sempre para os deixar brilhar. No final das cinco músicas, ela agradecia-lhe sorrindo, pegava no casaco e desaparecia. Todas as quintas-feiras se encontravam no salão. Passavam toda a semana desejando que chegasse aquele momento. Porém, ele nunca tivera coragem para lhe fazer qualquer pergunta. Ela nunca tivera coragem para lhe explicar nada. Ao chegar a casa, ela abria a porta e uma voz perguntava: ”És tu filha?”…

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
09/01/2020
(imagem da net)

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Monte sereno


O pio da águia
seguiu céu afora

Guinou para a esquerda
direita agora

E o pato mergulhou
na água sem fundo

Só esse som se escutou
nesse pedaço de mundo

Uma ovelha baliu
remoendo a verdura

E o pastor aquietou o cão
num açoite de secura

A cegonha batendo o bico
numa voz feita de noite

Lembrou que era tarde
e no monte não há quem se afoite

O sol se escondeu
e num meio sorriso

o poeta desapareceu
naquela espécie de paraíso

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
06/01/2020

Nevoeiro no pensamento


De mãos cobertas de nevoeiro, colhia abóboras ainda meninas como ela e colocava-as num cesto. Tentava ficar perto da mãe para não se perder. Nem a metade das luvas que cobriam as costas e as palmas das mãos acalmavam as frieiras dos dedos nus em contacto com as gotas de gelo cintilante. Trazia na cabeça um gorro que lhe deixava de fora apenas os olhos pequeninos como azeitonas verdinhas e lustrosas.
Custava-lhe respirar, pois o ar frio entrava a seu bel-prazer pelos pequenos furos da lã e chegava à garganta ressequida e às narinas vermelhas já com feridas, indo ao encontro dos pequenos pulmões cansados da sua tarefa.
Ali perto, ouvia-se um adulto sempre a gritar numa língua desconhecida. Sempre que parava para segurar numa flor bonita que encontrava, aquele homem chamava-lhe a atenção. Ela assustava-se e a mãe voltava a colocá-la no trilho recomendando juízo.
Todos os dias eram feitos daquela brincadeira que ela já achava aborrecida, e que não compreendia. Todos os dias ela se lembrava do local onde vivera feliz com os pais e o seu ursinho de peluche que perdera na viagem. E a cama quentinha? Onde ficara?...

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
08/01/2020
(imagem da net)