segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Foto de agosto


A foto aflorou
no assento do sofá
sem lembranças
anteriores

sem mágoas tolas
sem dores
como imagem
que já não há

como música
que se ouve
na velha telefonia
a recordação

de um certo dia
surgiu como clarão
num quarto
morno que reluzia

ela virada de borco
no lençol branco
ele por trás
de tronco torto

inclinado sobre ela
num carinho
de mãos indizíveis

ela vestida de suspiros
e gemidos
incontáveis

num corpo de prazer
quase morto

e a foto dobrada
no canto
e o pranto calado
na saudade do passado

a volúpia
nos olhos de ambos
nos seios
nas coxas

passando pela boca
e as palavras distantes
inaudíveis

quebradas voláteis
penetrantes
nas cores
de um verão quente
de agosto, quiçá inesquecível…

Rosa Alentejana Felisbela
27/08/2018
(imagem da net)

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Cheiros e aromas

Escutas o som da chaleira. Primeiro aquele sopro agudo espalhando o vapor pela casa, depois o cheiro do chá. A infusão de hibiscos, amoreira, camomila, eucalipto, rosas e tantas outras, enlevam-te os sentidos e murmuram-te frases lúbricas aos sentidos, tantas vezes perdidos.
Olhas através da janela para a serra, e sentes as folhas do pinheiro-manso, do sobreiro, do carvalho, orvalhando a estrada até àquele Monte onde a Lua se deitou pela manhã. Conheces a magia que a desnuda nos versos que cantas, embora do corpo entendas apenas a prata pronta para a noite de amor claro, milimétrico, concêntrico que te fascina.
Arqueias a sobrancelha sobre o aro do ardil ardente que os seus dedos exploram no escuro, e nasce-te o arquejo do peito que quase explode de desejo.
Vives no chalé, perto da chácara onde ela, selvagem, comemora a feitiçaria com a mãe-natura.
Acompanhas a miragem dos braços que te chamam num aroma incorpóreo.
Queres para ti as longas pernas e o poço profundo, o chafariz do prazer guardado no segredo da tua língua, num paladar obsceno.
Chamas os montículos argentinos que despontam mesmo antes do dia nascer, para que a tua boca seja o cálice do seu prazer, mas o grito sai mudo.
Levantas a mão para o triângulo aberto da tua perdição, mas ela vira as costas num gesto casto, extremoso…
Porém, a brisa afasta-te dela, e o cheiro escapa-se pelas frinchas das portas, das janelas, dos teus olhos.
Louco, és o poeta que agarra no fio brilhante da faca afiada e corres para o campo.
Com as mãos trémulas, arriscas uma última prova de amor: desenhas no tronco da árvore mais próxima o teu nome com o nome da Lua, dentro de um coração que o tempo jamais apagará.
Ela chora, pois o sangue de sua irmã foi derramado por amor!
O cheiro? Desponta todos os dias, quando abres a janela do coração e te deixas, por ela, levar ao altar da insensatez.

Rosa Alentejana Felisbela
23/08/2018
(tema sugerido pelo meu amigo Luís Bento)
(imagem da net)

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Pessoas perfeitas?


Hoje, especialmente hoje, pondero sobre as oportunidades que damos às pessoas de partilharem o nosso caminho. Por vezes, aproveitam o desespero da nossa solidão e colam-se como lapas até sermos necessárias. Precisam de nós para lhes elevarmos o ego. Depois perdem o interesse e deixam-nos entregues à realidade. Tudo isso, porque nós somos peritos em criar na nossa mente a pessoa que nos convém, deixando de ser um estranho, mas não deixando de ser a mesma pessoa. Por vezes, favorecemos o abuso da sua presença, como animais de companhia, e a simples ameaça da sua ausência, faz gerar um medo medonho. Acredito que deve haver um equilíbrio, mas a generosidade de uma das partes, acaba por desequilibrar o que deveria ser puro. Desta forma, creio que a solidão dá o balanço para a necessidade ou a escolha de alguém a ter por perto. Pensamos que escolhemos e temos o “livre-arbítrio”, mas involuntariamente aceitamos a lisonja, ficamos demasiado viciados nas palavras dessa pessoa. Tentamos avaliar os outros pela bravura dos seus atos, mas e os resultados que se conseguem? Alguém os vê ou são apenas palavras bonitas? E o seu passado? É escolhido e contado da forma que interessa, retirando tudo aquilo que pode macular a personalidade. Desde pequena que me ensinaram que deveria ser mulher, amante, mãe, amiga, amparo…Mas, e quem me ampara a mim se for necessário? As palavras? Ou os atos concretos? Por vezes, é melhor corrigir o presente e aprender com o passado, nunca esquecê-lo. A nódoa fica na roupa quando te dizem que gostam de ti hoje, mas amanhã desaparecem. A nódoa mantém-se quando passas por dificuldades e as pessoas afastam-se. Acreditar em alguém é para mim uma proeza dramática. Mas não desisto, apenas esqueço quando não me interessa. Se tu consegues divisar o bom, do mau, parabéns! És uma pessoa perfeita. Mas essas existem???

Rosa Alentejana Felisbela
20/08/2018
(imagem da net)

quinta-feira, 16 de agosto de 2018

Perdi-me no teu olhar

Tantos dias, tantas horas passadas naquela mesma sala, com o sol a entrar pela janela e uma réstia de esperança a persistir. No quadro negro havia sempre um smile feito a giz amarelo para lhe chamar a atenção. Mas a entrada acontecia sempre da mesma forma, ele na cadeira de rodas, apático, sem reagir aos estímulos sonoros, visuais, olfativos…Ela bem se esforçava por dizer alto e bom som “bom dia José, como estás?”, e dava-lhe um beijo no rosto. Mas a reação era sempre a mesma: um olhar perdido por tantos surtos de epilepsia, e nenhum movimento.
Todos os dias lhe colocava as mãos por baixo das axilas e levava-o a cumprimentar os colegas, um a um, carregando-lhe o peso do corpo e o peso da esperança que lhe era ferida aberta. Sentava-o ao lado dos colegas da turma, conversava com ele todo o tempo, adaptava as atividades daquele menino às suas limitações e capacidades.
Colocava-o em frente de um espelho e ensinava-lhe onde estava o cabelo, os olhos, o nariz, e aos poucos fazia-o sorrir das brincadeiras. Sentava-o numa almofada e pousava-lhe as mãos num alguidar com água, outras vezes com areia, faziam construções a quatro mãos. O sorriso crescia naquele rosto anteriormente apático.
Criou-lhe um “tapete de sensações” que ele adorava tocar, para sentir as diferentes texturas dos materiais. O sorriso era agora uma constante.
Um dia, ao entrar na cadeira de rodas pela sala, ela não estava no local habitual e ele procurou-a com o olhar. Tendo percebido essa situação chamou-o de outra direção “bom dia José, como estás?”. A reação foi surpreendente: ele procurou-a nessa direção e deitou-lhe um largo sorriso nos olhos lacrimejantes. Ela foi ter com ele e deu-lhe o beijo habitual.
Nesse dia, ela sentou-se ao seu lado, mas estava adoentada e pousou a cabeça sobre a mão. Ele olhou-a e com a sua mãozinha procurou chegar à mão dela com um ar preocupado…Toda a turma se entreolhou e duas lágrimas percorreram o rosto da professora…Um sorriso cresceu depois, estava feliz por ter reação do menino que parecia apático e disse-lhe “ perdi-me no teu olhar!”.

Rosa Alentejana Felisbela
16/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Mariana Loureiro)
(imagem da net)

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

O invisível

Havia um mar sedento de brisas aos pés da areia. E ele roubava-lhe os beijos, não esperando a censura. Acariciava-lhe os seixos, lambia-lhe com ternura as vagas, penetrava-lhe as funduras de musgo.
Nos olhos verdes transparecia-lhe o coração, batendo desenfreado por delírios de guelras e escamas.
Mesmo ao canto do coral, dobrava-se a anémona da alegria, cuspindo espuma branca, sem vergonha, mas cheia de generosidade.
De algas se fizeram as importâncias. Das cadências se espalharam as harmonias. E nas turquesas, residiam os mundos líquidos das sapiências.
Dos cabelos de limos escorregaram filosofias de respeitos, mas sem comandante não podia haver navio. Esse era o corpo nu de histórias.
Por isso, afinaram-se as vozes das sereias, ergueram-se os tridentes dos tritões, e em silêncio abriu-se a boca do invisível.
Ele que era a lágrima da procura. Ele que era o domingo de sol acordado no sobressalto da guerra das ondas. Ele que encontrou a impossibilidade da distância do dia feriado…
Brincando entre as margens apertadas da imaginação, surgiu a tua imagem, como santa sagrada abençoando o seu altar de água. O manto branco cingindo as formas do corpo, a aura de brilho solar presa aos cabelos, o andar descalço sobre a fantasia…
E eu, teu eterno pescador de sonhos, atiro a rede para mais um dia de labor…e de amor.

Rosa Alentejana Felisbela
14/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Mariete Lisboa Guerra)
(imagem da net)

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Amor à distância

Era o dia de Nossa Senhora do Rosário. A festa da aldeia incluía sempre o som dos foguetes às 7 horas da manhã, a corrida das bicicletas às 9 horas em ponto e o almoço em família com os emigrantes que vinham propositadamente nessa altura. A procissão pelas 17 horas da tarde envolvia uma indumentária comprada especialmente para a ocasião, e as raparigas viviam o ano inteiro a sonhar com o baile dessa noite.
Ela vestira-se com o vestido verde, calçara sapatos pretos de tacão alto, fora à cabeleireira no dia anterior para vincar os caracóis negros que lhe emolduravam o rosto miúdo, mas bonito, maquilhara os olhos, os lábios e as faces e juntara-se às amigas para o baile. Todas tinham o sonho de encontrar um namorado nessa noite, pois seria abençoado pela Senhora do Rosário. Do alto dos seus 17 anos, achando que era já mulher feita, procurava abarcar todo o recinto com o olhar interesseiro e interessado por todos os jovens que aparentavam a mesma idade ou mais velhos.
Foi um acaso que a levou à quermesse e a encostar-se, sem querer, a um rapaz de blusão preto e calças de ganga, de cabelo penteado para trás e um palmo de cara bem jeitoso. Daí a iniciarem uma conversa que durou a noite inteira, uma dúzia de músicas dançadas perto demais para os bons costumes e um beijo roubado ao rosto, foram motivos para ficarem a conhecer-se e a amar-se para sempre.
Porém, quis o destino que se separassem pelo facto de ele ser emigrante em França e ela estar a estudar em Portugal. Ainda as cartas mal tinham chegado, já os telefonemas borbulhavam em casa da única amiga que tinha telefone. Foram anos de namoro, de amor à distância…
Queira o leitor imaginar como a história terminou.

Rosa Alentejana Felisbela
13/08/2018
(tema sugerido pelo meu amigo António Ferrolho)
(imagem da net)

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Crepe de chocolate

Estava cansada. Assim que colocou a chave na porta de entrada e a sentiu fechar-se atrás de si, atirou com os sapatos para o fundo do quarto, e as roupas que foi atirando, peça por peça, caiam para cima do tapete, da cama, da mesa-de-cabeceira…Não se importava. Sozinha em casa podia fazer o que lhe apetecesse sem dar satisfações a ninguém. Desligou o telemóvel. Ligou o computador, mas só para ouvir as músicas preferidas que descarregara ao longo do tempo.
Em frente do espelho, dançava agora com um copo de sumo de laranja natural na mão. Balançava as ancas, movimentava as pernas e os pés ao seu próprio ritmo, sem pensar na figura triste que podia estar a fazer. Encontrava-se no seu mundo, onde era dona e senhora das suas façanhas.
Quantas vezes tropeçara no tapete e caíra redonda no chão e rira a bandeiras despregadas? Quantas vezes comera gelado a ver TV e quando dera conta tinha a boca, as mãos e até o revestimento do sofá sujos e nem dera por isso, rindo sozinha do disparate? Quantas vezes colocara os óculos para ler mais focadas as letras dos documentos, dentro do frigorífico, andando louca pela casa à sua procura e quando fora buscar qualquer alimento, os vira e gargalhara até chorar?
Viver sozinha tinha destes privilégios e ousadias. Não sentia falta de ninguém para a completar, ela já era uma mulher completa. Tinha o seu emprego, pagava as suas contas, saía quando lhe apetecia, ficava quando queria ficar em casa. Não admitia intromissões na sua vida. Respeitava todos e era respeitada.
Quando as hormonas assim ditavam, lá arranjava uma companhia masculina, sempre na maior subtileza. Os namorados só davam trabalho, e ela queria sentir-se livre para ir ao ginásio, para ir ao cinema, para fazer viagens, para seguir dietas que regularmente transgredia. Tinha um grupo de amigas e amigos com quem saía e privava, mas gostava de estar só.
Naquele dia, o Banco estivera mais movimentado que o costume. Pessoas complicadas a entrar e a sair. Gente mal-humorada aos gritos. E ela, sempre educada, no seu fato de saia e casaco, o ar profissional e arranjado, de lábios bem torneados pelo batom e um sorriso para oferecer a cada um. Aguentara estoicamente a passagem das horas.
Por isso, naquele momento só seu foi até à cozinha e preparou um capricho: um crepe de chocolate.
Entretanto ouviu tocar à campainha da porta. Aborrecida foi vestir um roupão e espreitou pela vigia da porta: um rapaz lindíssimo, que nunca tinha visto, encontrava-se a olhar para a porta com um ar indecente. De sobrancelhas carregadas e um ar de interrogação abriu um pouco da porta e perguntou o que queria.
Com um ar sorridente, o vizinho do lado, que se mudara havia uma semana e percebera os hábitos dela respondeu:
- Ouvi a música, senti o cheiro a crepe de chocolate e vim descobrir se a vizinha me podia matar a gula ou me deixaria aqui com o desejo à porta…

Rosa Alentejana Felisbela
13/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Rute Engrácio)
(imagem da net)

domingo, 12 de agosto de 2018

O valor do beijo

Num monte ermo vivia a menina das tranças negras e pele de alabastro mais linda que os seus olhos já tinham visto. De vestidos confecionados pela mãe, modista de primeira ordem, os sapatos mandados fazer à medida no sapateiro da terra, as meias sempre puras como a cor que a cal tem na parede asseada do monte. Corria pelos campos todas as manhãs, colhia alecrim, rosmaninho e erva-doce, fazia um raminho e levava para casa, saltando alternadamente ora num pé, ora no outro, cantarolando.
Desconhecia o que enfeitava as divisões do monte, e quem vivia dentro da sombra fresca com a menina. Sabia somente que a via ir para a escola, de sacola às costas e a pressa nos sapatos, levantando a poeira no caminho de terra batida.
Espreitava-a por entre as árvores até chegar à escola, onde evitava falar-lhe ou olhar-lhe diretamente nos olhos para não despertar a fúria das meninas mais velhas, ou de algum rapaz mais travesso.
Gostava de a ver sentar-se no intervalo, numa pedra do recreio e ficar a brincar com pedrinhas, formando casinhas, poços e inventar bonecas e conversas, imaginando dar-lhes de comer e beber… Nunca levava lanche, nunca pedia nada a nenhuma amiga, nunca se importava de brincar sozinha.
Na sala de aula era das melhores alunas, ficava nas carteiras mesmo em frente da professora, sempre atenta a passar as lições para o caderno. Quando havia um concurso, ela ganhava com a melhor história e a melhor caligrafia. Cantava a tabuada do princípio ao fim e não errava nenhuma operação de somar, subtrair, multiplicar ou dividir…Conhecia as plantas e outros temas cujas ciências exigiam.
Tudo observavam esses olhos castanhos, com a curiosidade de criança de circo, a viver com os saltimbancos, de terra em terra, numa casa de lona. Os cabelos crescendo ao abandono dos ventos, a cor da pele a confundir-se com a da terra, e as roupas curtas demais para a idade que tinha.
Um dia, com a fome a martelar-lhe o estômago, resolveu perder a vergonha e bateu à porta do monte da menina. Ela veio abrir e olharam-se com a cumplicidade do reconhecimento. Disse-lhe “tenho fome…”. A menina embrenhou-se na escuridão e quando voltou trazia um copo de leite e um pedaço de pão com manteiga. Devorou-o com sofreguidão e bebeu de seguida o leite. Limpou a boca com as costas da mão e sem pensar deu-lhe um beijo voltando-lhe as costas a correr muito depressa nos seus pés descalços.
A menina ficou a ver aquela criança a correr, e percebeu que era uma rapariga da sua idade. Teve o impulso de a seguir, mas não o fez. Fechou a porta por dentro.
No dia seguinte procurou-a na escola, mas o circo já tinha partido para outra localidade. Nunca mais a viu, mas aquele beijo soube-lhe à amizade que nunca mais esqueceria.

Rosa Alentejana Felisbela
11/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Maria Aboim)
(imagem da net)

sábado, 11 de agosto de 2018

Por onde anda a Poesia?


Diz a sabedoria popular que “o vinho é poesia engarrafada”. Desde a escolha da cor da uva que devemos saber que algumas passam e outras ficam para sempre no nosso paladar.
Pensando bem, preciso de beber um copo de palavras tintas sempre que me apetece escrever um poema. Não sei se é do sabor açucarado, consigo rimas doces e palavras melosas, extraídas da cana mais pura de um dicionário exigente. Componho pirâmides, pedra a pedra, e no fim a cereja no topo do bolo, o clímax do ambiente emocional dilata-se nas retinas do leitor, como droga de arte suprema.
Porém, se o sabor é ácido, isso deve-se à levedura dos adjetivos, às bactérias de onomatopeias que coloriram as frases, e se embrenharam nos diferentes sentidos que cada palavra pode assumir. Dependendo do sujeito, a métrica torna-se interpolada, emparelhada, e as pernas envolvem-se como trepadeiras, deixando a embriaguez chegar ao cérebro, empiricamente falando.
Todavia, se eu beber um cálice de palavras brancas, o sabor amargo pode tomar conta das reticências e das exclamações, espalhar-se pela folha branca do papel e torna-lo pardo ao toque das teclas. Esse som assemelha-se ao rasgar das conjeturas do leitor e não haverá mais vontade para interpretar.
Existe ainda o sabor “umami” que é um sinónimo da perfeição no gosto das frases, fermenta-as ou envelhece-as em madeira e carrega-as de temperatura e humidade controladas. Como se a excitação se desse ao desfrute e os preliminares assumissem a importância que devem realmente ter numa cópula. Aí vem a censura acoplada…
A qualidade dos sabores advém do equilíbrio entre os sons, as rimas internas e a equação perfeita que sustenta a escrita do princípio ao fim, como vinho de sabor único, incomum, que não pode ser adulterado… Nem sempre se consegue, afinal há alguns “feitos a martelo”, causando as tais enxaquecas no dia seguinte. Esses nem deviam ter visto a luz porque incomodam mais do que dão prazer, como todos sabem...
No final, a rolha (de preferência de cortiça, que é mais resistente) deve ser colocada no segredo mais bem guardado. Este deve ser, ao mesmo tempo, explícito nas entrelinhas do poema. Sim, escrever dá imenso trabalho. O problema é não ter “sobre” o que escrever…

Rosa Alentejana Felisbela
10/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Maria Lúcia)
(imagem da net)

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Duas vidas um destino

O dia queimava as paredes de cal branca e o seu rosto vermelho destilava pequenas gotas de suor, enquanto se abanava com um leque comprado numa loja dos chineses. O vestido de cor rosa colava-se à pele morena, deixando os olhos verdes lacrimosos e os cabelos negros colados na nuca.
Tal como fazia todos os fins de semana, tomara as rédeas do carro a que chamava carinhosamente de “carocha”, mais por causa do tamanho e da cor, do que pela marca que em nada se assemelhava à real, e seguira estrada fora.
Buscava um sítio fresco onde tomar uma refeição leve, para depois se deslocar à praia fluvial perto das Minas do local escolhido. Pedira uma mesa dentro do restaurante, mas este encontrava-se lotado, tendo que ficar numa mesa exterior, exposta ao calor abrasador e ao vento infernal que fustigava, de quando em quando, as toalhas das mesas, o seu corpo magro e a sua sede.
Poucos segundos depois, chegou um tipo vulgar, não muito alto, de careca brilhante e um rosto ameno, desejando refrescar o seu sotaque do Norte numa bebida e local fresco. Obteve a mesma deceção: casa cheia, última mesa perto da senhora solitária.
Gonçalo, o empregado de mesa, convidou-os a ficarem lado a lado. Ambos se sentiram constrangidos, mas dadas as circunstâncias, não se opuseram, afinal, a fome, a pressa e a sede limitava-lhes as escolhas.
Para quebrar o gelo que rangia através da mesa, o senhor apresentou-se dizendo que se chamava Marcelo e que vinha negociar a compra de vinho para o seu estabelecimento comercial no Porto. Ela disse que se chamava Joana e que estava desempregada há uma semana, tendo sido vendedora numa loja de roupas em Beja.
Quando Gonçalo lhes trouxe a carta para fazerem o pedido, após um momento de ponderação, simultaneamente pediram grelhada mista com salada. Após um instante de perplexidade as gargalhadas fizeram-se ouvir. Continuaram a conhecer-se um pouco mais, ela um pouco mais recatada, ele um pouco mais entusiasta. Após a chegada do menu das sobremesas, ambos, mais uma vez, pediram sericaia.
Começavam a sentir um clima interessante entre ambos, como se o conhecimento existisse desde sempre. Os dois se afirmavam solteiros e tinham uma tarde inteira pela frente. O calor amenizou-se perante os seus olhares, mas os corpos continuavam a sentir a necessidade de um bom refresco. Pagaram a conta e saíram do restaurante.
Um a seguir ao outro seguiram o mesmo rumo na estrada. O destino iria levá-los a um local fresco…

(Desafio proposto pela minha amiga Ana Maria Santos)

Rosa Alentejana Felisbela
10/08/2018
(imagem da net)

O mistério da rosa


Foram as mãos do jardineiro que adubaram a terra argilosa. Recordo-me do corte diagonal na estaca, e da forma cuidadosa como a colocou na batata para criar raízes, enterrando-a depois, mantendo-a húmida. Foram tempos de nascimento, ou renascimento, como lhe queiramos chamar.
Curiosamente, há pessoas que não se importam com as suas raízes, mas eu preservava-as, porque sem elas não seria o que, mais tarde me viria a transformar. O jardineiro confidenciava-me, com razão, que tudo dependia da sorte, da meteorologia (o inverno deveria estar a acontecer), da terra, mas o cuidado era essencial.
Após a rega, cresceram as hastes e pequenas folhas. Evidentemente os espinhos faziam parte desse pequeno tronco, pois não há rosas sem eles. Penso que seja uma das formas de nos defendermos das tentações de sermos colhidas demasiado cedo, já que somos o símbolo dos apaixonados…
Aos poucos foram nascendo os ovários, os estames e as pétalas, perfumadas e coloridas. Mas, a minha cor era azul, que significa o verdadeiro amor eterno, raro, forte, que nunca se abala ou descolore, e isso tornava-me cobiçada. Dizia-me o jardineiro que em algumas culturas o azul significa mistério ou a busca/alcance do impossível. E seria impossível alguém maltratar-me, pois ele não deixaria.
Foi dessa forma que cresci e me tornei adulta, de folhas silenciosamente orvalhadas, de sentidos despertos à admiração dos caminhantes do jardim. O jardineiro guardava-me, mas o medo tomava conta de todas as horas do dia. Apenas de noite descansava os pensamentos ocultos.
Mas, num dia raro de nevoeiro intenso, foi com surpresa que dei por mim nas mãos imberbes de um rapaz ladino, de olhos travessos e nariz adunco. Nada pude fazer perante a sua perícia de mãos ágeis e do sorriso trocista. Nem os espinhos o impediram de me colher.
Percebi que ele nada entendia de rosas. Que a sua intenção não era senão plantar-me nas mãos de uma menina de bibe aos quadrados e de sardas nas maçãs do rosto.
Morri na minha tristeza no meio de um caderno quadriculado, perdendo o perfume nas páginas, secando as pétalas num amarelo desbotado… Um trunfo de amor sem importância que o lixo mais tarde acarretou.
Ainda se tivesse morrido no meio de um livro de poesia, com as palavras dançando no meio de um amor verdadeiro…

(Tema proposto pela minha amiga Wilma Gonçalves)
Rosa Alentejana Felisbela
09/08/2018
(imagem da net)

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Acalento


Hei de florir nesse mar
tantas vezes
quantas as ondas
onde mergulhas

Hei de perfumar o luar
tantas vezes
quantas as pratas
que olhas

Hei de ser o mel e o sal
na pele dos dias
que te tocam
e deixam do tempo o sinal

Hei de ser a escrita terna
incrustada na memória
do poema - a chama eterna
da nossa história
sem final

Hei de ser-te a alegria
da água escorrente
a única e derradeira magia
de um tesouro presente
em poesia

Hei de cantar-te a melodia
em murmúrios
na minha voz de sereia
sabendo que o amor
ateia no teu paladar

Hei de dar-te o rio
o riso
das papoilas do trigo
onde conheces o paraíso
- o único – para te acalentar

Rosa Alentejana Felisbela
08/08/2018

Tira-me daqui!


O dia tinha sido infernal. Aida vivia sozinha numa dessas casas antigas da baixa, cheia de azulejos e paredes grossas. Um luxo herdado da família outrora rica de bens, mas cujo tesouro havia sido completamente delapidado pelo pai, alcoólico que nunca superara a guerra de Angola, arrastando toda a família que lhe restava para um acidente fatal na avenida de onde se via o mar. A única sobrevivente fora Aida, com 18 anos, que nessa altura se encontrava nas aulas. Os pais, os irmãos e a avó tiveram um final rápido e, diziam-lhe, indolor. Ficara só, a administrar o pouco que restara. Encontrara um emprego como secretária durante o dia, e ia continuando a estudar durante a noite. Equilibrava-se na corda bamba da armadilha que a vida lhe montara. Tinha os pés assentes nas sandálias de tacão alto, que usava para valorizar a altura que lhe faltava. Olhava de esguelha os transeuntes da rua para a qual desembocava o olhar através da esplanada que, todos os dias, frequentava para beber um café e despejar o cheiro a suor que abominava nas mesas ao lado da sua. Os cabelos pretos presos ao alto, os brincos e colar brilhantes, e o vestido leve e florido despertavam o interesse dos homens. Logo hoje, que o ar condicionado do emprego tinha avariado, tendo que fazer mais de vinte subidas e descidas nas escadas que levavam ao andar inferior tiranizando os seus gémeos, porque a fotocopiadora resolvera, também ela, fazer greve de funcionamento…Acendeu um cigarro e ouviu a primeira notícia do telejornal na televisão do café. Ocorrera um incêndio, e uma mãe chorava a morte dos filhos que não conseguira salvar. As perguntas do repórter revoltavam os espectadores do café e do resto do país. Foi nessa altura, que Aida olhou para os pés inchados nas sandálias e duas fortes lágrimas magoaram o seu dia insuportável. Havia gente a sofrer mais do que ela e os seus problemas pareciam ínfimos agora. Quando olhou para o lado, chegava o seu grande amigo Luís. Levantou-se e deu-lhe um abraço tão apertado que ele quase ficou sem fôlego. Olhou-a nos olhos e perguntou como estava. Ela disse somente: “Estou ótima, mas tira-me daqui”!

(Tema proposto pelo meu amigo Geraldo Luís Braga)
Rosa Alentejana Felisbela
08/08/2018
(foto da net)

domingo, 5 de agosto de 2018

Errar é humano

Errar todo mundo erra e isso é fato, mas existe aquele que prefere estar no erro que admitir está errado, assumir um erro é nobre, consertar um erro é divino, ou vira homem de vez e assume que errou, ou dorme em paz com o erro, que ainda és um menino.
Cristina Maria

Desde pequena que os meus pais me ensinaram: se erraste com alguém, assume o teu erro e pede desculpas, por mais que te deixe desconfortável. Ora eu, que sempre fui bem comportada, segui à risca este conselho. Quando acontece errar, tento consertar, o que é bastante difícil, porque as desculpas não se pedem, evitam-se. Mas mesmo assim, concordando com a frase acima, assumir o erro enobrece a alma e faz-nos crescer em termos pessoais. Não pretendo ser divina, porque isso seria perfeito, e eu nunca serei perfeita, humana que sou. Todavia, ser “humano” é aprender a viver dentro da sociedade. Independente de concordar com as suas regras, elas existem. Uma ou outra regra eu já transgredi, o que me fez aprender, e eu quero aprender sempre mais. O problema reside na paz quando colocamos a cabeça sobre a almofada. Durmo tranquila com as ações que assumo. Se os meus erros me têm tornado numa MULHER melhor, com certeza que sim. Não convivo bem com pessoas que têm atitudes contraditórias e que nunca me explicam as suas razões. Ou são demasiado egoístas para pensarem nos outros? Desconheço as razões que levam as pessoas a terem dois pesos e duas medidas. Mais desconfortável me sinto se estiver frágil, porque não compreendo de todo. O diálogo existe justamente para nos entendermos. Quantas vezes já procurei dialogar para evitar enganos e confusões? Muitas. Fazendo o balanço das frases pronunciadas aqui e ali, se não consigo aferir as razões, fico triste. Mas a vida continua. Uns crescem e tornam-se homens, e outros ficam eternamente meninos.
Rosa Alentejana Felisbela
05/08/2018
(imagem da net)

sábado, 4 de agosto de 2018

Águas Lusas


Cega-me o sono
profundo
do fio da vida
a passar

E esse sotaque
“ragazzo”
que sinto
no meu escutar…

A porcelana
nos ombros do verão
macia,
a fazer-me corar

range na areia
do sonho
- açúcar-
no meu paladar…

Não deixes a solidão
presa a meu lado
a chorar

Bem sabes
que te preciso
-ritual do teu mar-

Mergulho no zodíaco
celeste e peço
que me conduzas
ao teu cais especial

para ancorar
nas águas lusas
da poesia
do teu olhar…

Rosa Alentejana Felisbela
05/08/2018

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Sarcasmo?


Conheces a cor da desilusão? O sarcasmo inerente à falta de humanidade? Sabes quantas folhas tem a árvore da vida e de como depende de ti para verdejar? Não desejo a maldade na fonte de água, porque até eu teria sede. Mas a solidariedade, tal como o copo de água, não se nega a ninguém. Descansa na almofada todas as noites. Dorme o sono dos justos. Não queiras saber da dor alheia. Por vezes, sinto vergonha alheia. Ela cega-me. Talvez seja o amor a pregar-me o sermão do “bem te disse para não voltares a acreditar na flor da madrugada”. Ou talvez seja a mágoa a colocar-me sílabas roucas na garganta. Quem sabe se esta noite adormeço sem a pílula do descanso? Sinto-me firme, como o sobreiro, mas a minha raiz está amaldiçoada. Terá sido o feitiço do quebranto ou o simples acaso? Não sei dizer. Só quero o abraço humano de quem me sabe. E tu sabes-me muito bem!

Rosa Alentejana Felisbela
03/08/2018

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

A meu lado


Diz-me: existe um prazo destinado à esperança? Aquela esperança que nos salva do abismo, criada por um Deus que nunca vi, ainda subsiste? Sabes, tenho orações que os meus lábios não conseguem pronunciar perante a despedida constante do sol. Acendo velas no altar-mor, perfumo o santuário de incenso, coloco todos os dias flores frescas nas jarras da vida. Mas o fim ronda a cada dia que morre, a cada centelha que se apaga no céu deste fim do mundo. Algo me prende e diz que a tormenta passa, que mesmo sem ver devo acreditar. Vou em busca da luz pelo caminho dos eucaliptos secos, mas perfumados. Cada passo que dou é firme, pois o chão melhor fica da minha margem. Dou-te a mão, para que nos erros e acertos possamos caminhar lado a lado. Mas compensa-me com a força do sol que sabes ter, com as palavras meigas que colocas em cada poema do pensamento, faz-me acreditar e não olhar para trás. Esse caminho já foi feito. À nossa frente está o futuro, quero-te ao meu lado, por favor.

Rosa Alentejana Felisbela
02/08/2018