domingo, 9 de agosto de 2020

sapatos de tacão alto


Na minha rua havia uma senhora muito fina. Costumava andar maquilhada e com sapatos de tacão alto. Eu achava-a linda. E ela gostava de me ter lá em casa. Não tivera filhos e adorava as minhas conversas. Dizia que eu era muito inteligente para a idade. Tínhamos conversas “sérias” sobre aprendizagens na escola, sobre a minha futura profissão de cabeleireira ou professora. Ela dava-me muita atenção, enquanto fazia o almoço. Às vezes dava-me rebuçados. Um dia encontrei-a muito atarefada a fazer limpezas e fui conversando, enquanto fui ao quarto dela. Calcei uns sapatos com tacão alto, e andei a passear-me por ali a brincar. Quando tirei os sapatos, verifiquei que um dos saltos estava torcido. Tive medo de lhe dizer e fui embora, sem dizer adeus. Ela estranhou e foi ver o que se teria passado. Quando chegou a vez de a minha mãe saber, fiquei uma semana sem poder ir a casa da minha vizinha, e a mãe pagou o arranjo do sapato. A minha vizinha não queria nada disso, porque adorava a minha companhia, mas compreendeu a decisão da minha mãe. A partir daí, só andava com os sapatos com tacão alto com autorização da minha vizinha, e com todo o cuidado.

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Refletindo sobre o tempo verbal Presente sem indicativo


Sempre que vejo destroços empoeirados de cimento, correm-me penas, colossos de lágrimas, pelas crianças erradas no cenário.
Umas olham a tristeza com a distância incrível, que só elas conseguem, desde o cordão umbilical, até ao ponto exato onde jazem.
Outras desviam o olhar do ecrã que as salva da proximidade e comem sortes abissais, às quais perdem o valor num copo de coca-cola.
Umas não sabem onde beber, seguem os cachorros até charcos cheios de destroços.
Outras seguram telemóveis topo de gama e discutem notas para a entrada num canudo que as levará a ver o futuro pela janela.
Umas não conhecem a máquina que as eterniza num ponto qualquer do tempo, que perderam, assustadas com os ruídos dos estilhaços de pão perdido algures…
Outras cospem a mesquinhez no rosto dos pais, envenenam pensamentos e rogam pragas de facas na mão.
Umas escondem pequenos esqueletos, no meio da algazarra dos guindastes e escavadoras obscenas, que descobrem cadáveres incompletos.
Outras prostituem os costumes para conseguirem, sem se importarem com quem morre de fome e medo.
Umas choram o medo dos desconhecidos, levadas por mãos alheias, benfeitoras ou malfazejas.
A Covid é o (pre)texto para um Portugal escrito cheio de rasuras. A explosão em Beirute é o texto cheio de erros ortográficos.
Os fracos serão sempre fracos. Os fortes serão sempre fortes.
Apelo ou agravo?

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
07/08/2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Diário de um tipo inconveniente


Os cães não param de ladrar no quintal do vizinho. A minha cabeça começa no mesmo rodopio de sempre. As dores nos músculos, no braço, no peito. E a amargura que não consigo engolir de uma só vez. Se eu conseguisse, abria a boca e mordia cada bocado das minhas insatisfações, cada migalha das preocupações, cada grão de pó dos pensamentos retorcidos e comia-os. Podia assim, engravidar de defesas e parir novos sonhos. Quem mos tirou? Quem mos levou? Onde ficaram? Sei que preciso mudar, mas falta-me aquele clik no botão da sabedoria. Os cães continuam na sua azáfama, e as minhas reflexões continuam disparatadas. Um sopro de vento quente inunda a pouca vontade que há em mim. Levanto-me da cadeira e recebo-o pela janela aberta. Mais um dia para recomeçar.

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)

sábado, 1 de agosto de 2020

Colar de contas pretas


Pego naquele colar de contas negras que a avó esconde na gaveta da mesa de cabeceira e saio a correr para o quintal. A avó cuida das galinhas, poedeiras de pintos amarelos, que um dia hei de apanhar para explorar melhor. Levo-o escondido no bolso do bibe aos quadrados azuis e brancos. Passo a correr o lugar onde devia haver uma porta entre os quintais, mas que não existe. Vou para a manta estendida por baixo da figueira e retiro-o com cuidado. Por momentos, coloco-o ao pescoço e caminho pela manta como dama da corte, deixando que os súbditos me beijem a mão. Rapidamente me aborreço, e coloco-o em volta do braço, como tinha visto umas senhoras fazerem televisão. Sou a rainha que se senta no chão a dar conselhos ao seu povo. Poucos minutos depois, tento colocar o colar na perna, mas ao dar a última volta parto-o e na manta espalham-se muitas bolinhas… Fico vermelha e assustada. Apanho todas as continhas negras e vou a correr coloca-lo novamente na gaveta. Com a pressa, esqueço-me da avó, que me segue e vê o que fiz. Só a ouço gritar atrás de mim “Magana, que me partiste o terço”!!!!

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)