quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Até um dia ter coragem…


Havia no largo da aldeia, uma fonte de água cristalina e fresca. Era nela que os pássaros matavam a sede. Em volta dela, as abelhas zumbiam a sua azáfama. As libelinhas volteavam as asas transparentes. E ela, borbulhava de mansinho, afagando cada um, qual mãe abraçando os seus filhos, cheia de carinho.
Quis o destino que a moça do xaile colorido, de rodilha na cabeça para segurar a quarta de água, passasse para encher a sua bilha. Nesse momento, um casal de pombos arrolhava o seu amor, num banho de asas tão entusiasmado, que salpicou o rosto rubro da moça. Os seus olhos negros sorriram e a sua boca de lábios generosos soltou uma bela gargalhada. Enquanto isso, ela dobrou o corpo no seu vestido feito de pano barato, colocou a quarta de barro sob a fonte e sentou-se na beirinha, aguardando que enchesse. Brincava com os caracóis negros sob o lenço e os bolsos do avental amarelo, de onde retirava pequenas migalhas de pão, que distribuía com os dedos longos das mãos macias e caridosas, pelos pombos que ali apareciam. Balançando os sapatos modestos, afastava os pensamentos para longe. Uma melodia surgiu-lhe na voz encantadora. Como água pura, confundindo-se com a mesma nascente, ela deleitou quem a escutava. Por fim, pegou na quarta, ajeitou o xaile e a rodilha, mulher feita e desembaraçada, e foi subindo o outeiro a cantar até chegar à casa pequena e simples que lhe servia de moradia.
O rapaz de pele bronzeada, de chapéu de palha sobre os olhos morenos, continuava sentado por baixo do plátano ali defronte. Com os dedos de unhas sujas, continuava a atirar pedrinhas para dentro de um buraco feito com a parte de trás das botas gastas. A camisa de quadrados arranhava-lhe o corpo contra a casca da árvore. As formigas entravam-lhe pelo colarinho desgastado e picavam-lhe o pescoço e a pele onde a barba começava a despontar. Mas ele estivera mais atento à rapariga, do que ao carreiro das formigas. As calças de bombazina, abertas nos joelhos, deixavam entrar o sol. E o rapaz levantou-se sem coragem para lhe dirigir a palavra. Ficou a vê-la subir o outeiro. Mais uma manhã que guardava nas recordações mais belas da sua vida. Afinal, não existia essa coisa do destino. Ele fazia-o diariamente. Até um dia ter coragem…
Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
21/11/2019
(imagem da net)

domingo, 17 de novembro de 2019

Degelo


Raios de sol refletindo
Arco-íris derramados
Campos de gelo luzindo
Bancos de neve parados

O vento frio passando
Pela imensa superfície
Sem saber vai cortando
Fazendo qu’o degelo inicie

Animais desorientados
Buscam outras paragens
Muitos são assassinados
Pela culpa dos homens

Alguns ingerem plástico
Outros presos em redes
Clima que era fantástico
Vira anúncio nas paredes

Às vezes dá desânimo
Viver nesta imensidão
De homem tão magnânimo
Que não vê com o coração

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
17/11/2019
(imagem da net)

sábado, 2 de novembro de 2019

A poesia das coisas


Ela via além dos objetos opacos, das flores delicadas, das paredes salgadiças, das vozes presentes. Bastava-lhe um olhar mais demorado, e crescia-lhe a fome de utilizar as palavras.
Uma caneca envelhecida de tantas lavagens, descascada no local onde tantas bocas beberam, com as suas cores desbotadas, não era um simples objeto opaco. Era a taça da criança mais amada numa família, a mais utilizada para beber o leite retirado diretamente da vaca. E quando o sono a visitava, nos braços da sua mãe, a criança segurava-a nas suas mãos pequeninas e bebia até adormecer.
Quando os seus olhos de verde seco pousavam nas rosas alaranjadas, sabia, antecipadamente, que fora o pai de uma numerosa família, que tratava de jardins enquanto fora emigrante, que trouxera as podas e as semeara debaixo da janela da sua esposa, para que, ao amanhecer, sempre que a abrisse, o perfume envolvesse os seus amados sentidos.
Os seus olhos alagavam-se de lágrimas pelas paredes salgadiças, por resistirem à enorme trovoada que abatera o teto daquela casa. Ela que abrigara os berços de dois meninos, chorando de fome durante a noite, juntamente com as lágrimas dos seus pais, por nada lhes poderem dar de comer. Por isso, ficaram salgadiças e os ratos tiveram a oportunidade de abrir buracos de um lado ao outro.
Bastava uma palavra trazida pelo vento, para que ela soubesse que em algum lugar, um rapaz de nariz sujo e rosto tisnado apanhava uma sova do padrasto por não ter trazido mais dinheiro em esmolas para casa.
A sede das sílabas diluídas num dicionário imaginário, levavam-na a pingar frases e frases sobre as folhas de papel reciclado. Tudo lhe matava a fome da escrita. Até que um dia, perdeu a transparência do olhar, as pétalas secaram, as paredes caíram e as vozes silenciaram. E ela soube que os seus olhos cairiam no chão, sem brilho. E que a sua caneta repousaria, sem tinta, para sempre, sobre o papel reciclado.

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
02/11/2019
(imagem da net)