quarta-feira, 6 de julho de 2022

Cenários

 

Entendam que ele, hoje, vestiu a sua camisa branca, imaculada.

Por trás das suas costas, o teatro agiganta-se e abre as cortinas com pó, com palavras e com fachadas. Espectadores e espectadores caem em valas comuns abertas em feridas cruas, numa terra dura.  Estilhaços de dor vão corroendo as vidas cansadas.

Entendam que ele, hoje, vestiu as suas calças bege, perfumadas.

O cheiro pútrido da fuga resiste em estradas vãs. Finos fios de ajuda humanitária cruzam-se num tempo demasiado entardecido. De vez em quando, um murro da voz de mães, um estalo dos olhos lacrimosos de crianças, e o martelo da indiferença não atrapalha. E ELES? O que fazem?

Entendam que ele, hoje, calçou as meias limpas.

As SUAS vozes, a meias, vendem pecados, vomitam vazios, enfatizam projetos de paz alheia à nação. Incham os egos. Ofendem-se comadres. Pasmam-se descrenças. Incubam-se vinganças e alcançam-se espasmos de vitórias. Joga-se o jogo do “unidos pela pátria”, quando a festa começa e o povo já não tem pão.

Entendam que ele, hoje, calçou os sapatos novos.

Olha os pés com pedaços de pranto atrás da orelha. Sacode-os num gesto simples.

Entendam: ele caminha porta fora com o filho nas mãos…

Felisbela Baião (Rosa Alentejana)

(imagem da net)



sábado, 23 de abril de 2022

vírus

 

Caminho escondido

entre o som e o zumbido

a dor e a flor

complexo banido

uma gota um sinal

a febre e a rouquidão

uma chaga desilusão

e uma força brutal

Sou aresta e és tudo

o cubo que me abraça

a raça de ser

humano

Felisbela Baião (Rosa Alentejana)

imagem da net



domingo, 20 de março de 2022

Clic

 


Esquecemos depressa

as luzes, os estrondos

os saques

 

Publicidade que passa

uns segundos

no tempo

 

Temos pena das crianças

Dos velhos

Das mulheres

 

Mas só durante

um instante

 

Depois fica a conta

da luz, do óleo

da gasolina

 

E as dores no ombro,

nas costas

que não passam

 

Um umbigo alimentado

a banho quente

a sofá e a mantinha, uma casa

 

E na memória,

Lá muito ao fundo,

o resto

 

do mundo

 

Felisbela Baião (Rosa Alentejana)

20/03/22



Saque

 



Trazes nas botas

o barulho, o ribombar

dos passos

 

Um espaço passado

e um ínfimo

movimento

 

Um desmembrar

de vozes

e de gritos vorazes

 

Um desvio cruel

e velhos e meninos

aflitos

 

Trazes léguas

de lágrimas

e lírios esquecidos

 

sobre a cova do tempo

gemidos e mulheres

audazes

 

e um momento

depois do arame

de PAZ

 

bendito

 

Felisbela Baião (Rosa Alentejana)

20/03/22