quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Tira-me daqui!


O dia tinha sido infernal. Aida vivia sozinha numa dessas casas antigas da baixa, cheia de azulejos e paredes grossas. Um luxo herdado da família outrora rica de bens, mas cujo tesouro havia sido completamente delapidado pelo pai, alcoólico que nunca superara a guerra de Angola, arrastando toda a família que lhe restava para um acidente fatal na avenida de onde se via o mar. A única sobrevivente fora Aida, com 18 anos, que nessa altura se encontrava nas aulas. Os pais, os irmãos e a avó tiveram um final rápido e, diziam-lhe, indolor. Ficara só, a administrar o pouco que restara. Encontrara um emprego como secretária durante o dia, e ia continuando a estudar durante a noite. Equilibrava-se na corda bamba da armadilha que a vida lhe montara. Tinha os pés assentes nas sandálias de tacão alto, que usava para valorizar a altura que lhe faltava. Olhava de esguelha os transeuntes da rua para a qual desembocava o olhar através da esplanada que, todos os dias, frequentava para beber um café e despejar o cheiro a suor que abominava nas mesas ao lado da sua. Os cabelos pretos presos ao alto, os brincos e colar brilhantes, e o vestido leve e florido despertavam o interesse dos homens. Logo hoje, que o ar condicionado do emprego tinha avariado, tendo que fazer mais de vinte subidas e descidas nas escadas que levavam ao andar inferior tiranizando os seus gémeos, porque a fotocopiadora resolvera, também ela, fazer greve de funcionamento…Acendeu um cigarro e ouviu a primeira notícia do telejornal na televisão do café. Ocorrera um incêndio, e uma mãe chorava a morte dos filhos que não conseguira salvar. As perguntas do repórter revoltavam os espectadores do café e do resto do país. Foi nessa altura, que Aida olhou para os pés inchados nas sandálias e duas fortes lágrimas magoaram o seu dia insuportável. Havia gente a sofrer mais do que ela e os seus problemas pareciam ínfimos agora. Quando olhou para o lado, chegava o seu grande amigo Luís. Levantou-se e deu-lhe um abraço tão apertado que ele quase ficou sem fôlego. Olhou-a nos olhos e perguntou como estava. Ela disse somente: “Estou ótima, mas tira-me daqui”!

(Tema proposto pelo meu amigo Geraldo Luís Braga)
Rosa Alentejana Felisbela
08/08/2018
(foto da net)

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