domingo, 12 de agosto de 2018

O valor do beijo

Num monte ermo vivia a menina das tranças negras e pele de alabastro mais linda que os seus olhos já tinham visto. De vestidos confecionados pela mãe, modista de primeira ordem, os sapatos mandados fazer à medida no sapateiro da terra, as meias sempre puras como a cor que a cal tem na parede asseada do monte. Corria pelos campos todas as manhãs, colhia alecrim, rosmaninho e erva-doce, fazia um raminho e levava para casa, saltando alternadamente ora num pé, ora no outro, cantarolando.
Desconhecia o que enfeitava as divisões do monte, e quem vivia dentro da sombra fresca com a menina. Sabia somente que a via ir para a escola, de sacola às costas e a pressa nos sapatos, levantando a poeira no caminho de terra batida.
Espreitava-a por entre as árvores até chegar à escola, onde evitava falar-lhe ou olhar-lhe diretamente nos olhos para não despertar a fúria das meninas mais velhas, ou de algum rapaz mais travesso.
Gostava de a ver sentar-se no intervalo, numa pedra do recreio e ficar a brincar com pedrinhas, formando casinhas, poços e inventar bonecas e conversas, imaginando dar-lhes de comer e beber… Nunca levava lanche, nunca pedia nada a nenhuma amiga, nunca se importava de brincar sozinha.
Na sala de aula era das melhores alunas, ficava nas carteiras mesmo em frente da professora, sempre atenta a passar as lições para o caderno. Quando havia um concurso, ela ganhava com a melhor história e a melhor caligrafia. Cantava a tabuada do princípio ao fim e não errava nenhuma operação de somar, subtrair, multiplicar ou dividir…Conhecia as plantas e outros temas cujas ciências exigiam.
Tudo observavam esses olhos castanhos, com a curiosidade de criança de circo, a viver com os saltimbancos, de terra em terra, numa casa de lona. Os cabelos crescendo ao abandono dos ventos, a cor da pele a confundir-se com a da terra, e as roupas curtas demais para a idade que tinha.
Um dia, com a fome a martelar-lhe o estômago, resolveu perder a vergonha e bateu à porta do monte da menina. Ela veio abrir e olharam-se com a cumplicidade do reconhecimento. Disse-lhe “tenho fome…”. A menina embrenhou-se na escuridão e quando voltou trazia um copo de leite e um pedaço de pão com manteiga. Devorou-o com sofreguidão e bebeu de seguida o leite. Limpou a boca com as costas da mão e sem pensar deu-lhe um beijo voltando-lhe as costas a correr muito depressa nos seus pés descalços.
A menina ficou a ver aquela criança a correr, e percebeu que era uma rapariga da sua idade. Teve o impulso de a seguir, mas não o fez. Fechou a porta por dentro.
No dia seguinte procurou-a na escola, mas o circo já tinha partido para outra localidade. Nunca mais a viu, mas aquele beijo soube-lhe à amizade que nunca mais esqueceria.

Rosa Alentejana Felisbela
11/08/2018
(tema sugerido pela minha amiga Maria Aboim)
(imagem da net)

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