sábado, 2 de novembro de 2019

A poesia das coisas


Ela via além dos objetos opacos, das flores delicadas, das paredes salgadiças, das vozes presentes. Bastava-lhe um olhar mais demorado, e crescia-lhe a fome de utilizar as palavras.
Uma caneca envelhecida de tantas lavagens, descascada no local onde tantas bocas beberam, com as suas cores desbotadas, não era um simples objeto opaco. Era a taça da criança mais amada numa família, a mais utilizada para beber o leite retirado diretamente da vaca. E quando o sono a visitava, nos braços da sua mãe, a criança segurava-a nas suas mãos pequeninas e bebia até adormecer.
Quando os seus olhos de verde seco pousavam nas rosas alaranjadas, sabia, antecipadamente, que fora o pai de uma numerosa família, que tratava de jardins enquanto fora emigrante, que trouxera as podas e as semeara debaixo da janela da sua esposa, para que, ao amanhecer, sempre que a abrisse, o perfume envolvesse os seus amados sentidos.
Os seus olhos alagavam-se de lágrimas pelas paredes salgadiças, por resistirem à enorme trovoada que abatera o teto daquela casa. Ela que abrigara os berços de dois meninos, chorando de fome durante a noite, juntamente com as lágrimas dos seus pais, por nada lhes poderem dar de comer. Por isso, ficaram salgadiças e os ratos tiveram a oportunidade de abrir buracos de um lado ao outro.
Bastava uma palavra trazida pelo vento, para que ela soubesse que em algum lugar, um rapaz de nariz sujo e rosto tisnado apanhava uma sova do padrasto por não ter trazido mais dinheiro em esmolas para casa.
A sede das sílabas diluídas num dicionário imaginário, levavam-na a pingar frases e frases sobre as folhas de papel reciclado. Tudo lhe matava a fome da escrita. Até que um dia, perdeu a transparência do olhar, as pétalas secaram, as paredes caíram e as vozes silenciaram. E ela soube que os seus olhos cairiam no chão, sem brilho. E que a sua caneta repousaria, sem tinta, para sempre, sobre o papel reciclado.

Rosa Alentejana (Felisbela Baião)
02/11/2019
(imagem da net)

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